Folha de S. Paulo


Voluntário lucra R$ 26 milhões por serviço 'gratuito' à Santa Casa de SP

A família de um voluntário da Santa Casa de São Paulo deverá receber cerca de R$ 26 milhões pela prestação de serviços "gratuitos" na "defesa dos interesses" do hospital.

A história da generosa caridade começa em 2000, quando foi assinado um contrato de serviço "gratuito" entre o hospital e o escritório J.R. Nogueira e Associados, do advogado José Reinaldo Nogueira de Oliveira, em sociedade com um irmão e dois filhos.

O objetivo era correr atrás de recursos federais não pagos por serviços do hospital prestados ao SUS, em razão de erro no fator de conversão de moedas nos anos 1990. Uma ação considerada simples. Ocorre que, nessa mesma época, esse advogado era também o vice-procurador jurídico do hospital e, assim, o responsável pela indicação e contratação do escritório.

Embora o documento tenha sido assinado pelo provedor da Santa Casa da época, foi Oliveira que, na prática, contratou o próprio escritório para a atuar na ação. Além disso, também era de responsabilidade do corpo jurídico do hospital a redação do documento que, na primeira página, previa a prestação desse serviço de forma gratuita.

O mais relevante, porém, vinha na folha seguinte. Todas as despesas da ação caberiam aos cofres do hospital e, ao mesmo tempo, dava aos advogados 20% sobre o "benefício econômico auferido pela irmandade" em caso de vitória. A cada R$ 100 ganhos na ação, R$ 20 ficariam com esse escritório de advocacia.

Documentos da época, na ação, mostram que a Santa Casa já estimava receber –com base em reclamações idênticas de outros hospitais– pelo menos R$ 37 milhões. Ao final, em 2011, a Santa Casa recebeu R$ 100 milhões da União ao final dessa ação.

COFRES DO HOSPITAL

A menção aos valores está na ata de reunião da mesa administrativa da Santa Casa de 9 de agosto de 2000. Nesse mesmo texto, o então provedor, Octávio Mesquita de Carvalho, diz ter outorgado a Oliveira procuração para ingresso de ação. Não é mencionado, porém, o escritório dele –que não tinha sido contratado antes nem depois disso.

Se Oliveira tivesse ingressado com a ação como procurador do hospital, ou utilizando um dos mais de 40 advogados na Procuradoria Jurídica do hospital, todos os valores da ação iriam para os cofres da instituição –sem pagamentos dos 20% de honorários ao escritório dele.

"Além disso, como informado, o próprio contrato previa, em sua primeira página, a gratuidade, quando, na realidade, tratava-se de negócio jurídico oneroso, o que corrobora a má-fé que circundou sua celebração", diz trecho da ação judicial da Santa Casa.

Oliveira, na ocasião, ocupava no hospital função não remunerada de irmão mesário. São chamados de irmãos os que dedicam parte de seu tempo para ajudar a Santa Casa voluntariamente. Geralmente são profissionais consagrados que fazem esse trabalho como caridade.

A quantia somente não foi paga ainda porque, no ano passado, a direção da instituição conseguiu na Justiça o bloqueio do pagamento. Eles apontaram uma série de irregularidades no contrato e "má-fé" dos envolvidos.
Uma definição sobre o caso pode ocorrer neste mês.

A Santa Casa também alega em seu pedidos que, pelas regras vigentes na época, um irmão mesário não poderia ter no exercício da função na irmandade "qualquer remuneração ou benefício, de forma direta ou indireta".

Editoria de Arte/Folhapress
RAIO-X DA SANTA CASAAinda endividada, instituição se recupera de crise iniciada em 2014

CRISE

À época da assinatura do contrato com a família Oliveira, o procurador-chefe da Santa Casa era o também advogado Kalil Rocha Abdalla –que viria a se tornar provedor em 2008. Em seis anos à frente do posto, Abdalla viu a dívida do hospital saltar de R$ 70 milhões para R$ 800 milhões -além de acumular uma série de denúncias de irregularidades na gestão.

O hospital segue em situação financeira dramática, em busca de renegociações e novos créditos. A dívida recuou para cerca de R$ 600 milhões.

O ápice dos problemas financeiros se deu em 2014, quando o pronto-socorro central da instituição teve suas portas fechadas por 28 horas –em razão de dívidas com fornecedores. "Não temos dinheiro para remédio. Onde preciso comprar 100, só consigo 50. Não tem seringa, soro e esparadrapo", disse o provedor Kalil à época.

Os cerca de R$ 26 milhões que devem ficar com o escritório da família Oliveira seriam suficientes para arcar com dois meses de medicamentos do complexo hospitalar, que atende 330 mil pessoas ao mês (entre atendimentos, exames e cirurgias).

Oliveira morreu em 2004. Seu filho, José Reinaldo Júnior, tornou-se irmão da Santa Casa no ano seguinte e hoje é o herdeiro do escritório (chamado hoje de Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados em razão de fusões). José Reinaldo Júnior diz não ver nada de errado no episódio. Diz que o escritório foi contratado para prestar serviços ao hospital.

ADVOGADO

O advogado José Reinaldo Nogueira de Oliveira Júnior, herdeiro do então vice-procurador jurídico e irmão da Santa Casa desde 2005, disse não se sentir incomodado com a ação do hospital. "É um direito dela discutir isso judicialmente."

"Evidentemente que a gente não concorda, porque o escritório trabalhou 16 anos, gerou um ativo de R$ 100 milhões para a Santa Casa. Ela pagou dívidas com esse ativo. O escritório foi remunerado da forma com prevê a lei e como contrato com outros clientes."

Para ele, também não há nenhum conflito de interesses no fato de o vice-procurador jurídico, na prática, contratar o próprio escritório. "Quem foi contratada foi uma empresa, não meu pai. O escritório foi contratado à época porque éramos, provavelmente, o escritório no Brasil que mais tinha ação para discutir esse tipo de assunto", declara.

Além disso, segundo ele, quando o contrato foi assinado com o hospital não haviam sido estipulados valores e, além disso, não se tratava de trabalho fácil –como alega a atual direção do hospital. "Não era uma ação de baixa complexidade, até porque nós perdemos em primeira instância."

Oliveira Júnior afirma também que, ao contrário do que entende a Santa Casa, nunca foi dito que o serviços seriam de graça. O que não seria cobrados, diz ele, eram os honorários antecipados.

O advogado disse que não era possível porque o escritório tem mais 14 sócios e, parte deles, até recebeu recursos desses créditos. Eles foram vendidos a um fundo de investimento, que repassou parte dos valores.


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