Folha de S. Paulo


Após naufrágio, medo marca travessia feita por cerca de 17 mil pessoas na BA

Avener Prado/Folhapress
Ferryboat vindo de Salvador chega na ilha de Itaparica; trabalhadores fazem a travessia diariamente
Ferryboat vindo de Salvador chega na ilha de Itaparica; trabalhadores fazem a travessia diariamente

Tradicional refúgio a 12 km de Salvador, a ilha de Itaparica transita entre um passado idílico e o crescimento caótico de seus núcleos urbanos.

Hoje, milhares de seus moradores cruzam diariamente a baía de Todos-os-Santos por melhores condições de saúde, educação, empregos e serviços públicos.

Na última quinta-feira (24), no que seria mais uma dessas viagens, a lancha Cavalo Marinho 1 naufragou logo após deixar a ilha com destino a Salvador. O acidente, que deixou 18 mortos, incluindo três bebês, é o maior desde que o sistema começou a operar nos anos 1960 –apenas dois dias antes, um outro naufrágio já tinha matado 23 pessoas no Pará.

A ilha é formada por dois municípios: Vera Cruz, com 43 mil habitantes, e Itaparica, com 22 mil. É das duas cidades que sai a maioria das 5.000 pessoas que diariamente transitam nas lanchas e outras 12 mil que usam o sistema ferryboat pagando tarifas entre R$ 5 e R$ 7,40. São trabalhadores, estudantes e famílias que dependem de Salvador.

As três crianças que morreram no naufrágio tinham tratamentos de saúde como elo comum. Davi Gabriel Monteiro, 6 meses, iria ao pediatra com a mãe. Lucas Leão, 2, faria consultas médicas. Darlan Queiroz, 2, acompanhava a avó que faria exames na capital.

O maior hospital da ilha, em Itaparica, tem estrutura modesta. Baleados que chegam ao local são encaminhados para o hospital de Santo Antônio de Jesus, a quase cem quilômetros.

Há um ano, o pedreiro Paulo Diniz, 27, quase decepou o polegar em uma máquina de corte de pedra. "Cheguei no hospital de Itaparica e me falaram que, se me tratassem, não reconstituiriam meus nervos e eu perderia o movimento do dedo." Enfaixou o polegar e foi para Salvador.

Em Vera Cruz, novos cidadãos vera-cruzenses são raridade. O hospital, que também abriga uma maternidade, foi fechado neste ano. A prefeitura diz que havia uma laje com risco de desabamento e vai iniciar uma reforma.

Para aprimorar o atendimento de urgência, a unidade de pronto atendimento da cidade foi ampliada em junho. Os dez leitos emergenciais foram usados para o atendimento de vítimas do naufrágio.

É lá que Sandra Nascimento, 41, realiza seus exames de raio-x. Porém, ela faz tratamento para o câncer nos ossos na capital. "Tudo depende de Salvador, não tem jeito."

O prefeito de Vera Cruz é exemplo do que vive a cidade: por sete anos, Marcos Vinicius Marques, 35, teve que atravessar todos os dias de lancha para a capital, onde cursou a universidade e pós-graduação. "Isso é uma rotina para centenas de moradores", diz.

EMPREGOS

As casas de veraneio com paredes descascando e pilares de madeira apodrecidos são um reflexo do declínio da ilha. Itaparica e Vera Cruz estavam entre os principais destinos turísticos da Bahia até meados dos anos 1990.

Abrigou mansões como a do ex-senador Antônio Carlos Magalhães (1927-2007) e do banqueiro Ângelo Calmon de Sá. Mas perdeu o posto de destino favorito dos baianos para o litoral norte do Estado.

"A ilha foi pensada como um balneário de Salvador, mas acabou se transformando num local de moradia para a população mais pobre. Isso gerou problemas ambientais e paisagísticos graves", diz o urbanista Luiz Antônio Souza, da Universidade do Estado da Bahia.

A queda no turismo, acompanhada do crescimento das cidades, resultou na falta de postos de trabalho.

Morto no naufrágio, Thiago Henrique Barreto, 35, trabalhava como agente penitenciário em Salvador. Já Eduardo Aguadê, 64, um dos 91 sobreviventes, é servidor na prefeitura da capital e enfrenta uma aventura diária nas lanchas. "Preciso ganhar a vida, então me arrisco."

As novas gerações seguem o mesmo caminho para estudar –não há faculdades públicas ou privadas na ilha. Rafael Passos, 26, chega a gastar seis horas por dia entre lanchas e ônibus para estudar turismo e hotelaria. Vinícius dos Anjos, 27, estudante de engenharia mecatrônica, faz o mesmo trajeto.

Depois de sobreviver ao naufrágio, Felipe Marques da Silva, 22, não sabe se vai seguir com o curso de engenharia da computação. Seus pais não querem que ele volte a fazer a travessia diariamente. "Não vamos conseguir dormir", diz a comerciante Ana Dantas, 37, mãe do rapaz.

A busca pelo diploma, contudo, encerrou-se para Laís Pita Trindade, 20, e Isnaildes de Oliveira Lima, 45, que estudavam em Salvador. Laís queria ser enfermeira e Isnaildes almejava ser advogada. No dia 24, os sonhos das duas submergiram nas águas da baía de Todos-os-Santos.

Lancha naufraga na Baía de Todos os Santos

PROMESSA

O fim do vaivém em lanchas se tornou uma promessa em 2008, quando o governo do Estado anunciou a construção de uma ponte ligando a ilha a Salvador. Com custo estimado de R$ 7 bilhões, a ponte seria a segunda maior do país, perdendo apenas para a Rio-Niterói.

Nove anos depois, porém, as obras não foram sequer licitadas e a travessia segue sendo feita em lanchas com mais de quatro décadas de uso.

Responsável pela concessão, a agência reguladora estadual Agerba informa que todas têm vistoria e documentação em dia e estão em plenas condições de segurança.

Mas quem faz as travessias no dia a dia não tem a mesma impressão. O comerciante Ítalo Vinagre, 38, viveu momentos de tensão há três meses.

Ele viajava em um barco da mesma empresa dona da lancha que naufragou, a CL Transportes, quando começou a entrar água. Os passageiros ficaram em pânico: choravam, gritavam e disputavam coletes salva-vidas.

"Essas lanchas são um perigo. Você viaja ouvindo o rangido das tábuas de madeira. É um negócio macabro."

Vídeos do ocorrido no dia viralizaram na internet. Num deles, uma mulher manda um recado aos filhos: "Se eu não chegar em casa, amo vocês."

O governo não mantêm fiscais no terminal de Vera Cruz. "Até para registrar queixa sobre as lanchas temos que atravessar e fazer isso em Salvador", diz o prefeito da cidade, Marcos Vinicius Marques.

O Ministério Público da Bahia diz que tem alertado sobre a precariedade do sistema há dez anos. A CL Transportes não atendeu às ligações da Folha.

Bombeiros/Divulgação
Projeção dos bombeiros de locais onde provavelmente ainda podem haver corpos do naufrágio em Vera Cruz
Projeção dos bombeiros de locais onde provavelmente podem haver corpos do naufrágio em Vera Cruz

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