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Rapé, pó amazônico alucinógeno, conquista adeptos em baladas de SP

Rubens Cavallari/Folhapress
O engenheiro José Filho, 68, mostra o Tipi, objeto usado para inalar o rapé, junto com o filho
O engenheiro José Filho, 68, mostra o Tipi, objeto usado para inalar o rapé, junto com o filho

Um pó alucinógeno no limite da legalidade está se popularizando entre frequentadores de bares e baladas alternativas na capital.

É o rapé da Amazônia, composto de ervas, cascas de árvores e outras plantas tradicionalmente usadas por tribos indígenas da América do Sul há milhares de anos.

Há dezenas de receitas. Quase todas levam tabaco, e parte tem plantas com substâncias psicoativas, que podem causar de relaxamento a estado de êxtase e até alucinações. São esses efeitos que têm atraído adeptos, que usam rapé tanto em casa quanto em baladas.

Várias versões de rapés têm plantas que contêm DMT (dimetiltriptamina), alucinógeno proibido pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). O DMT é a substância ativa do chá da ayahuasca, usado em rituais indígenas e da seita do Santo Daime. Apenas o uso religioso da ayahuasca é permitido.

O uso recreativo desse tipo de rapé é, em tese, proibido, mas ele é facilmente confundido com rapé autorizado; alguém pego inalando pode alegar que o uso é religioso; e a fiscalização do produto é praticamente nula.

O dramaturgo Mário Bortolotto, 54, sócio de um bar na Bela Vista (centro), diz ter conhecido o rapé por meio de uma amiga, há dois anos, e conta que o primeiro contato com o pó foi negativo. "Mas, alguns minutos depois, veio uma sensação de relaxamento muito boa. Passei a comprar pela internet", afirma Bortolotto.

O advogado Glauco Paone, 52, diz usar rapé esporadicamente, em bares na Vila Madalena (zona oeste) e na praça Roosevelt (centro). "Experimentei pela primeira vez no ano passado e gostei do relaxamento e do torpor", diz. "Gosto de usar na balada, dá uma boa acalmada, mas prefiro usar em casa."

A advogada Letícia Kruger, 37, também diz inalar eventualmente. "Curto usar na noite, mas não gosto das versões que não são produzidas pelos índios. Algumas já têm até aromatizantes."

O Ministério da Justiça não se manifestou sobre legalidade, venda e fiscalização do produto.

ÍNDIOS APROVAM

Um pajé e um cacique da etnia Huni Kuin, do Acre, iniciam a rara sessão, na noite da última quarta-feira (19), na Vila Madalena (zona oeste). No local, 22 pessoas, com idades de 20 a 68 anos.

O pajé usa o tipi para soprar o rapé nas narinas dos presentes. Há tosses e espirros. Alguns se sentam, outros, vomitam. Rolos de papel higiênico, água e latas de lixo estão à disposição de todos.

O pajé puxa cânticos e marca o ritmo com um chocalho. Começa uma dança em fila com braços entrelaçados. Uma fogueira é acesa.

O engenheiro José Carlos de Camargo Pacheco Filho, 68, estava na roda do pajé e experimentou o rapé pela segunda vez. Sentiu fraqueza nas pernas e se sentou, mas caiu. Ficou deitado em um colchonete por alguns minutos. "O rapé é forte, dá uma sensação muito grande de tranquilidade", disse o engenheiro, que busca cura no ritual. "Tenho compressão na coluna e perdi o tato na mão direita e parte do braço. Já fiz duas cirurgias e não voltei a ter a sensação do tato, ainda."

Quem o levou foi o filho, o corretor de imóveis Lucas Mateus de Camargo Pacheco, 23, adepto da religião daimista. Ele também busca se curar, de um tremor essencial. "Já melhorei bastante. É uma doença para qual a medicina do homem branco diz não ter cura", afirmou.

PERIGO

O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira Filho, professor da Unifesp, diz que o rapé da Amazônia com DMT não deve ser usado recreativamente. "No uso ritualístico há a possibilidade de uma crise de ansiedade e, em pessoas com predisposição, há até o risco de um surto psicótico", disse o psiquiatra. "Há também elevação da pressão e batimento cardíaco."

O cacique Txuã Huni Kuin, 40, da aldeia Huni Kuin do Acre, também é contrário ao uso recreativo do pó. "O rapé é usado em rituais de cura e purificação. O rapé é sagrado para o meu povo. É um presente da sabedoria do Huni Kuin para o homem branco. O pajé é um médico. A universidade dele é a floresta. É lá que ele aprende tudo, desde criança, o valor de cada planta. Não tem dinheiro que compre essa sabedoria", disse ele.

O especialista em plantas medicinais e sacerdote umbandista Diego Caniza, 36, também explica que o uso fora do contexto religioso não é recomendável. "O rapé tem em seus componentes o que chamamos de 'plantas de poder'. Elas nunca devem ser usadas levianamente, ou há consequências. Um exemplo é o tabaco. Usado de maneira sagrada, é agente purificador e transformador. Fora desse contexto, ele traz vício e sofrimento. E é assim com qualquer outra planta de poder usada fora da maneira correta."


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