Folha de S. Paulo


Com doença rara, Gianlucca, 5, amarga espera por remédio de R$ 398 mil

Gianlucca, 5, perdeu há pouco mais de um mês o movimento que o fazia sorrir e levar momentos de alegria e esperança aos pais e à irmã, Giovanna, 8. Agora ele tem usado o piscar dos olhos para manifestar emoções.

Durante sua tenra vida, perder não é uma novidade para o garotinho. Convivendo com uma doença rara, e de origem genética, a atrofia muscular espinhal (AME), ele vai, aos poucos, tendo a musculatura degenerada e a dependência ampliada.

Uma grande vitória, porém, foi celebrada pela família do pequeno, há 108 dias, quando a Justiça deu ordem ao Ministério da Saúde para que forneça ao menino uma promissora medicação, já em uso nos EUA, no Canadá e em diversos países da Europa.

Judicialização da saúde

O spinraza, que teve aprovação de comercialização nos EUA em dezembro do ano passado, tem revelado resultados surpreendentes na recuperação do quadro de pessoas com AME ao redor do mundo. No Brasil, a Anvisa ainda analisa se o produto será liberado para a venda.

Gianlucca ganhou o direito de testar o remédio, mas ainda não pode comemorar.

Ele e a família aguardam o cumprimento da determinação do desembargador federal Marcelo Saraiva, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. A Justiça já reformou a cobrança e anuncia agora que irá começar a aplicar multas contra a União.

Levantamento feito pelo banco de dados jurídico DBJus a pedido da Folha mostra que há outros 473 casos de descumprimento de decisões judiciais em 118,6 mil processos pedindo medicamentos, como o de Gianlucca

Um dos entraves mais claros para que o menino não seja contemplado com o remédio é seu custo. Uma ampola do remédio, que serve para uma aplicação, vale cerca de US$ 125 mil, ou algo em torno de R$ 398 mil.

As doses recomendadas para Gianlucca são quatro, distribuídas em 60 dias, depois, mais uma dose, a cada quatro meses. A continuidade da prescrição depende da evolução. A aplicação é feita diretamente na medula.

"Pelo menos doze crianças morreram no Brasil com AME, desde março, quando houve a decisão do Gian. Qual o valor dessas vidas? Qual o valor da vida do meu filho? É muita dor para centenas de famílias que enfrentam essa doença", diz Cátia Trevellin, 41, a mãe.

Desde os seis meses de idade, Gianlucca apresenta sintomas da AME tipo 1, o mais grave e mortal das subdivisões da doença.

"Passamos por doze médicos, mas ninguém conseguia fechar um diagnóstico. No dia exato em que o Gian completou um ano, chegou em casa o resultado do exame que indicava a doença. De lá para cá, foi muita luta", diz a mãe.

ROTINA

O menino hoje respira por ventilação mecânica. Há dois anos, ficava até 12 horas sem o aparelho; hoje, no máximo, fica por uma hora e meia.

Precisa ter secreções aspiradas pela boca –para não se afogar– ao menos 40 vezes por dia. Tem a saturação de oxigênio monitorada permanentemente e alimenta-se por uma sonda gástrica.

Cada vasilhame do leite especial que toma, são seis por dia, custa R$ 20. Assim mesmo, sente um permanente desejo de experimentar alimentos novos, sabores. A doença impede que o menino tenha domínio do engolir e os alimentos sólidos podem significar grande risco para ele.

"Ele chora quando nos vê comendo algum doce ou mesmo tomando um cafezinho. Por isso, evitamos ao máximo chegar com alimento perto dele. Às vezes, a gente não aguenta e encosta um docinho na língua do Gian, para que ele tenha uma noção do gostinho", afirma o comerciante Renato Trevellin, o pai.

O garoto ainda precisa de terapia ocupacional, fonoaudiologia e do acompanhando de uma enfermeira. Edna Rosa está com ele há quatro anos. Trabalha durante o dia. A missão noturna é dos pais.

ESPERANÇA

Enquanto aguardam o desfecho do entrave judicial –já enfrentaram outros seis, contra planos de saúde–, os pais de Gian tentam nutrir de informação, esperança e apoio um grupo de 350 famílias ligadas a eles por meio de uma associação que montaram em Santo André, no ABC paulista, onde moram.

"Pessoas do mundo todo estão publicando vídeos na internet, após usarem o remédio que aguardamos para o Gian. Crianças estão retomando movimentos nos braços, estão ganhando capacidade respiratória e evoluindo bem. Cada pessoa é diferente, reage diferente, mas não podemos deixar de tentar e de ter fé que dará certo", declara o pai.

Para que o garoto possa interagir mais com a família, uma maca e os apetrechos de saúde foram colocados na sala da casa, onde ele vê desenhos e observa um pedaço da rua pelo vidro da janela.

"Ele adora sair, adora festa, mas é muito difícil levá-lo pela logística e pelo risco. Certa vez, em um shopping, ele quis ficar vendo as crianças brincarem em uma piscina de bolinha. Um policial nos incentivou a colocá-lo dentro do brinquedo, com cadeira de rodas e tudo. Meu filho viveu um momento único", afirma a mãe.

Na semana passada, os Trevellins levaram Gian a uma comemoração "julina", com direito a fogos, quentão e quadrilha. Os olhos de sorriso do garoto não pararam de se agitar.

Pela evolução natural da doença, sem tratamento, ele também poderá parar de piscar a qualquer momento.

Firme durante a entrevista à Folha de quase duas horas, a mãe chora no final da conversa: "meu filho não quer morrer, não quer desistir. Ele nos passa o tempo todo a mensagem de que quer aproveitar o dia, brincar, abraçar a irmã, jogar bola. Não vamos desistir dele nunca".

EM ANDAMENTO

Por meio de nota, o Ministério da Saúde informou que "foi notificado por meio de liminar em abril deste ano sobre o fornecimento do medicamento spiranza 12mg" para Gianlucca e que a aquisição da medicação para o garoto está "em andamento".

A pasta disse ainda que "irá recorrer da decisão nas instâncias cabíveis" e que "cumpre todas as decisões judiciais". Por tratar-se de um remédio importado, de acordo com o ministério, "o prazo médio estimado para a sua aquisição é de 90 a 120 dias".

A demora, segundo a pasta, é porque a compra envolve cotação internacional de preços, registro no sistema de compras do governo federal e autorizações da Anvisa e da Receita Federal.

OS 10 REMÉDIOS MAIS CAROS - Em 2016, governo gastou R$ 655 milhões com esses medicamentos, para apenas 1.213 pacientes


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