Folha de S. Paulo


'Sem culpados', tragédia da TAM ainda frustra famílias dez anos depois

Há cerca de um mês, Dario Scott se arrumava para um compromisso inadiável. Chegou ao tribunal e aguardou pela sentença: absolvidos.

Ao ouvir a decisão, Dario disse a frase que repete desde que sua filha se tornou uma das vítimas do voo JJ3054 da TAM que atravessou a pista de Congonhas e chocou-se com um prédio da própria companhia: "O culpado fui eu, que permiti que minha filha entrasse naquele avião".

Para a decepção de Dario, a Justiça não ficou convencida de que uma ex-diretora da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), além de um ex-diretor e o ex-vice presidente da TAM fossem responsáveis diretos pela tragédia que matou 199 pessoas na noite chuvosa de 17 de julho de 2007 –e que completa dez anos nesta segunda-feira (17).

Na disputa judicial, a acusação já sofreu duas derrotas (em primeira e em segunda instância da Justiça Federal) que praticamente exauriram as chances de alguma condenação no caso. O Ministério Público analisa agora se vale a pena recorrer e levar a discussão aos tribunais federais de Brasília.

"Para as famílias, as sentenças foram uma frustração. Tínhamos a expectativa da condenação", lamenta Dario, que perdeu a filha Thaís Scott, de 14 anos, que viajava para passar as férias com os avós.

O jornalista Roberto Gomes, 61, que perdeu o irmão Mário –que tinha 49 na época do acidente–, diz que a decisão no último mês "abalou o senso de Justiça das famílias das vítimas". "Para as famílias, gostaríamos que o Ministério Público recorresse até as últimas instâncias. Hoje, não sabemos que futuro o caso terá."

PROCESSO

A fase de coleta de provas para o processo judicial começou logo após o acidente. A acusação formal ficou aos cuidados do procurador Rodrigo de Grandis. De Grandis até então era conhecido pela participação na investigação da operação Satiagraha, que investigou o banqueiro Daniel Dantas.

Em julho de 2011, De Grandis acusou três pessoas: Denise Abreu, ex-diretora da Anac; Marco Aurélio Miranda, ex-diretor de segurança da TAM, e Alberto Fajerman, ex-vice presidente da TAM.

A estratégia foi reduzir o número de acusados propostos pela Polícia Civil e pelo Ministério Público Estadual (mais de uma dezena), concentrando os responsáveis.

No caso de Denise Abreu, a acusação era de que ela havia induzido equivocadamente a Justiça a liberar a pista de Congonhas para operações sem restrições.

Acontece que, meses antes do acidente, a pista de Congonhas havia passado por reformas para aumentar sua aderência. Com obras ainda incompletas, a pista foi liberada quando Denise Abreu encaminhou à Justiça uma série de relatórios que avalizavam a segurança da pista. Entre os documentos, apresentou uma regra que restringiria o pouso de aeronaves que estivessem sem um dos reversores (um dos sistemas de freio dos aviões acionado pela turbina). Mas a regra nunca foi posta em prática.

Segundo a acusação, se o documento apresentado por Denise fosse válido, o pouso do avião da TAM não seria autorizado em Congonhas, já que o avião estava com um de seus reversores quebrados.

Enquanto isso, Marco Aurélio Miranda (ex-diretor de segurança da TAM) e Alberto Fajerman (ex-vice presidente da TAM), eram acusados de não terem desviado o voo, sabendo que o avião estava com um defeito e que a pista de Congonhas estava molhada.

No início de 2014, De Grandis declarou à imprensa ter convicção da responsabilidade dos três réus. Entretanto, na primeira e na segunda instância da Justiça Federal prevaleceram as interpretações dos laudos técnicos da Polícia Federal e do Cenipa (órgão da Aeronáutica responsável de investigação de acidentes) que apontaram para falhas no uso das turbinas do avião e não na situação da pista.

O relatório do Cenipa mostrava que um dos manetes (controles das turbinas) do avião estava em posição de aceleração, quando deveria estar em ponto morto assim que a aeronave tocou a pista.

Por uma das hipóteses, ao tocar o solo o piloto teria feito o procedimento padrão, mas um erro no sistema de controle de potência dos motores fez com que a turbina esquerda forçasse a parada do avião enquanto a turbina direita acelerasse.

Na segunda hipótese, o piloto teria errado. Por uma análise do Cenipa, os pilotos poderiam estar sob pressão ao saber das condições adversas da pista de Congonhas e do avião. Instantes antes do pouso o comandante teria alterado o procedimento padrão de pouso para ter maior segurança e se confundiu, deixando uma das manetes em posição de aceleração.

Diante dessas duas hipóteses, a Justiça entendeu que não estava no alcance dos réus evitar o acidente.

Dez anos após a tragédia, Dario Scott, lamenta a perspectiva de falta de condenações no caso. "As famílias vivenciam o luto novamente a casa nova etapa do processo, a cada novo julgamento. Ainda assim, queríamos que alguém tivesse sido condenado para que isso não voltasse a ocorrer de novo no Brasil".

ACIDENTE AMPLIOU SEGURANÇA

O acidente com o Airbus 320 da TAM trouxe à tona a preocupação frequente que passageiros e até pilotos tinham com a falta de segurança em Congonhas.

Ainda que investigações oficiais não tenham apontado a pista do pouso como determinante para a tragédia, nos últimos dez anos o aeroporto –incrustado na zona sul de São Paulo– viveu aprimoramentos que ajudaram a
diminuir os riscos.

As mudanças são relatadas pela Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), Infraero (responsável pela infraestrutura de Congonhas), Airbus (fabricante do avião acidentado) e pela própria TAM.

Entre as principais alterações está o encurtamento da pista, o que exigiu novos padrões de operação dos aviões e permitiu a abertura de áreas de escape em caso de derrapagens.

A Airbus também desenvolveu um alarme na cabine dos pilotos que indica se as manetes estiverem em posições opostas (uma em aceleração e outra em reverso) na hora do pouso ou da decolagem. Seu uso é obrigatório em Congonhas.

Além disso, novas regras da Anac determinaram que apenas pilotos com mais de cem horas de voo podem operar no aeroporto, que precisa agora mandar análises mensais (às vezes quinzenais) à agência sobre o atrito de suas pistas.

*

Cronologia

Ninguém foi responsabilizado até hoje

17.jul.07
Acidente com o voo JJ 3054 da TAM no aeroporto de Congonhas mata 199 pessoas

Out.09
PF e Cenipa (órgão que investiga acidentes aeronáuticos) terminam suas investigações paralelas

Jul.11
Ministério Público apresenta denúncia contra três executivos, dois da TAM e uma da Anac

Ago.13
Começam os depoimentos dos três acusados

Mai.15
Justiça nega acusação em primeira instância

Jun.17
Justiça nega recurso da acusação em segunda instância

-

Os acusados

TAM
Alberto Fajerman, ex-vice-presidente, e Marco Aurélio Miranda, ex-diretor de segurança
Acusação: não fiscalizar devidamente a tripulação e não ter redirecionado o avião para outro aeroporto, sabendo que no dia anterior houve um incidente na mesma pista com outro avião

ANAC
Denise Abreu, ex-diretora da agência de aviação civil
Acusação: ter induzido equivocadamente a Justiça a liberar a pista de Congonhas para aeronaves com reversor quebrado, caso do avião da TAM

-

Como foi o acidente

Google maps/Editoria de Arte/Folhapress

1. 17h16
Airbus- A320 da TAM parte de Porto Alegre com 187 pessoas a bordo

2. 18h40
Torre de controle diz ao piloto que a pista está molhada e que é preciso pousar com cautela (chovia naquela hora). Às 18h44 pouso é autorizado e, às 18h50, é iniciado

3. Airbus toca a pista
A aeronave toca o solo da pista de Congonhas. O ideal é que esse procedimento ocorra a 300 m do início da via (que tem 1.940 m)

4. 'Vira, vira, vira agora'
Vozes de dentro da cabine da tripulação do avião dizendo 'vira, vira, vira agora' são escutadas por controladores da torre de controle

5. Colisão com prédio
Sem conseguir desacelerar, avião faz uma curva à esquerda. Depois, atravessa a avenida e bate em um prédio da TAM

MORTOS -

-

Câmera do aeroporto

Divulgação/Editoria de Arte/Folhapress

Em alta velocidade, avião atravessa em três segundos um trecho que outros levavam 11 segundos

Divulgação/Editoria de Arte/Folhapress

No canto esquerdo da imagem, aparece um clarão junto à aeronave, ainda na pista

Divulgação/Editoria de Arte/Folhapress

Após a colisão com o prédio da empresa, é possível notar a luminosidade da explosão

-

Explicações

Condições
O avião da TAM estava com uma das duas turbinas sem reversor, sistema que ajuda a frear –o que não o impedia de voar

Manetes
As turbinas são controladas por duas manetes, que podem ser colocadas pelo piloto em três posições

Editoria de Arte/Folhapress

-

Hipóteses

1. Falha no avião
Uma falha no sistema de potência das turbinas teria deixado uma delas em aceleração, enquanto a outra tentava parar o avião (independentemente de como o piloto posicionou as manetes)

2. Falha humana
Sob pressão de pousar com chuva e sem reversor, o piloto teria feito um procedimento diferente do usual, não se atentando ao fato de ter deixado uma das manetes em modo aceleração

MOVIMENTO EM CONGONHAS - Passageiros que embarcaram e desembarcaram no aeroporto desde o ano do acidente, em milhões

Fontes: Anac, Justiça Federal, Aeronáutica e Infraero


Endereço da página:

Links no texto: