Folha de S. Paulo


Baixos preços fazem empresas tirarem do mercado medicamentos essenciais

Arquivo Pessoal
Vera Maria, 56, que tem um linfoma e ficou seis meses sem um medicamento, que foi descontinuado
Vera Maria, 56, que tem um linfoma e ficou seis meses sem um medicamento, que foi descontinuado

Por falta de interesse comercial, laboratórios farmacêuticos têm retirado do mercado medicamentos antigos e baratos, alguns deles essenciais e sem substitutos.

Das 1.748 drogas canceladas entre maio de 2014 e junho de 2017, 63% foram por motivação comercial, segundo levantamento feito pela Folha no site da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

As outras razões (37%) se referem a mudanças no local de fabricação, problemas com o princípio ativo da droga, entre outras. Quase um quinto (17%) dos cancelamentos foi reativado depois.

A indústria deve informar a interrupção à Anvisa com, no mínimo, seis meses de antecedência –se a droga não tiver substituto, o aviso deve ocorrer um ano antes.

As farmacêuticas alegam que há defasagem de preços motivada pela política governamental. Já o governo federal diz que os preços dessas drogas têm sido revisados.

Na oncologia, há uma grande preocupação com essa situação porque o atraso do tratamento ou sua interrupção pode acelerar o crescimento do tumor e reduzir as chances de cura.

Segundo a médica Maria Inez Gadelha, diretora do departamento de atenção especializada do Ministério da Saúde, muitos pacientes têm ficado "órfãos" dessas drogas.

"A maioria dessas drogas integra esquemas quimioterápicos que curam o câncer, enquanto os novos antineoplásicos, em quase sua totalidade, só tratam paliativamente os doentes", afirma.

Gadelha diz que ao menos 30 medicamentos para o câncer já foram descontinuados desde 2014 ou correm sério risco de sê-lo, entre eles para tratamentos de tumores de bexiga, pulmão e leucemias.

"Muitos desses remédios foram desenvolvidos a partir dos anos 1950, não possuem patente e, por serem baratos, a indústria não tem mais interesse em produzi-los."

Vera Maria Pinho de Oliveira, 56, já sentiu na pele os efeitos dessa falta. Ela trata de um linfoma desde 2009 com o medicamento Leukeran. "Foi o único capaz de manter a doença controlada."

Desde novembro, porém, o medicamento, que custava R$ 38, desapareceu das farmácias de Belo Horizonte (MG), onde mora. Ela tentou encontrá-lo em outros Estados, mas não teve sucesso.

Foram seis meses de tentativas até que conseguiu comprar quatro caixas diretamente do laboratório e recebeu a doação de outras três.

No período em que ficou sem a droga, usou altas doses de corticoide para controlar a doença. "Tive reação alérgica, ganhei peso, fiquei sem dormir e precisei tomar outros remédios para controlar esses sintomas", conta.

A fabricante GSK diz que o desabastecimento foi temporário e comunicado à Anvisa. E que, em conjunto com a farmacêutica Aspen, a nova fabricante do Leukeran, trabalha para regularizar a oferta.

PARADOXO

Para Angelo Maiolino, presidente da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular, os pacientes com câncer vivem hoje um paradoxo: sofrem dificuldade de acesso a drogas antigas e baratas, por falta de interesse das farmacêuticas, e também às novas, por causa do alto custo.

Maiolino cita outro exemplo de droga que sumiu do mercado: o melfalano, usado para tratar o mieloma múltiplo e essencial no transplante de medula, teve sua produção interrompida neste ano.

Segundo ele, o remédio não tem substituto e sua falta prejudica o tratamento de muitos pacientes, diminuindo as chances de cura.

"Por mais antiético, absurdo e quase criminoso que seja imaginar a falta de um medicamento imprescindível, a indústria não é obrigada a produzi-lo. Nem aqui e nem em outros países", diz.

A droga, também da GSK, parou de ser fabricada no mundo todo e, após pressão internacional, voltou a ser produzida em janeiro último, mas ainda há falta.

Maria Inez Gadelha diz que um outro laboratório aguarda autorização da Anvisa para produzir o melfalano.

Para Merula Steagall, presidente da Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia), o Ministério da Saúde só age "apagando incêndios". "Eles precisam prever o desabastecimento e agir de forma preventiva."

O oncologista pediátrico Vicente Odone diz que outra preocupação é a qualidade das drogas importadas em substituição das tradicionais que são descontinuadas."O país não têm grandes centros de qualidade de medicamentos que atestem a segurança e a eficácia do que está vindo."

FARMACÊUTICAS

Os laboratórios farmacêuticas alegam que a interrupção de certos remédios no país ocorre muitas vezes mais por defasagem de preços provocada pela política governamental do que por motivo comercial.

"Muitas vezes, as empresas querem fabricar determinados medicamentos, inclusive essenciais, mas o preço autorizado pelo governo não cobre os custos de produção", diz Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindusfarma (sindicato paulista da indústria de produtos farmacêuticos).

Nessas circunstâncias, segundo ele, é do governo, e não da indústria, a responsabilidade pelo fato de um produto ficar indisponível para o paciente.

"No Brasil, é o governo que dá a palavra final sobre a oferta de medicamentos no mercado, ao determinar o preço dos produtos, permitindo apenas um reajuste anual, também definido pelo governo."

Em nota, a Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa) lembra que, após o término da patente de um medicamento, surgem indústrias que passam a fabricar novas versões do medicamento. "Portanto, quando uma indústria decide descontinuá-lo, não significa necessariamente que haverá desabastecimento, pois existem versões similares e genéricas."

A nota diz ainda que a própria decisão pela descontinuidade do medicamento não significa que a indústria deixará de produzir terapias contra a mesma doença. "É comum haver medicamentos substituídos por novas moléculas, capazes de tratar com mais eficácia e segurança as mesmas enfermidades."

Segundo a Interfarma, em menor número, existem os casos em que medicamentos únicos, sem versões genéricas, são descontinuados. "Isso geralmente acontece porque o custo dos insumos aumentou demais ou a própria fabricante do insumo, fornecedora da indústria farmacêutica, descontinuou a sua linha de produção, impactando a viabilidade do produto final."

Em nota, a farmacêutica GSK diz que "os produtos Leukeran e Alkeran integram um portfólio de produtos que foi vendido pela GSK à Aspen em 2009, portanto, desde maio deste ano, quando a transferência foi efetivada, a responsabilidade integral sobre os produtos é da Aspen."

Afirma ainda que o motivo do desabastecimento temporário em 2016 não foi por questões comerciais e sim por um problema identificado na fábrica que levou a limitações da capacidade produtiva e posterior interrupção do processo de embalagem secundária de ambos os medicamentos.

"A descontinuação temporária foi comunicada à Anvisa dentro do conceito de transparência que rege nossa conduta. Os estoques disponíveis à época foram direcionados para assegurar o atendimento a necessidades emergenciais e críticas".

PREÇOS REVISADOS

O Ministério da Saúde diz que, por meio de medida provisória, já foi autorizada a revisão do preço de drogas com risco de desabastecimento e falta de alternativa terapêutica que supra o mercado.

A ação teve efeito prático no abastecimento de penicilina e outros medicamentos. O ministério diz estar investindo R$ 6,4 bilhões em nova política de estímulo ao desenvolvimento da indústria nacional.

Foram eleitos 56 itens para parcerias de transferência de tecnologia e 115 para encomendas tecnológicas. Entre os oncológicos que podem ser descontinuados, dez estão nessa lista prioritária.


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