Folha de S. Paulo


Usuário de droga perdeu olho em ação da Polícia Militar na cracolândia de SP

Adriano Vizoni - 28.jun.2017/Folhapress
SAO PAULO - SP - BRASIL, 28-06-2017, 16h00: RAPAZ CEGO CRACOLANDIA. Retrato de Heitor Mira de Oliveira Fonseca, 28, que perdeu a visao apos tomar um tiro de borracha da policia militar na cracolandia no dia 17 de junho. Ele era usuario de crack e estava no local consumindo a droga. (Foto: Adriano Vizoni/Folhapress, COTIDIANO) ***EXCLUSIVO FSP***
Heitor Fonseca, 28, após perder o olho em ação policial

A última lembrança que Heitor Fonseca, 28, tem daquela manhã é a de um policial mirando em sua direção, enquanto ele, agachado, fumava crack com o cachimbo. Usuário da droga, ele vivia havia dois meses na cracolândia, no centro de São Paulo.

No final de maio, acompanhou a migração da concentração de dependentes da Luz para a praça Princesa Isabel, depois de uma ação policial levada a cabo pela gestão Geraldo Alckmin (PSDB) e celebrada pelo prefeito João Doria (PSDB).

A bala de borracha disparada pelo policial militar na manhã do dia 17 de junho atingiu seu olho esquerdo, destruindo completamente seu globo ocular. Hoje, ele só enxerga pelo olho direito.

Era um sábado, e a Polícia Militar e a GCM (Guarda Civil Metropolitana) acompanhavam a limpeza da praça, realizada por varredores da prefeitura. A ação ocorria duas vezes por dia e, para promovê-la, os agentes de segurança pediam que usuários se deslocassem para um canto da praça.

Naquele dia, segundo a Secretaria Estadual da Segurança Pública, a PM foi atacada quando tentou abordar suspeitos de tráfico. Usuários começaram a jogar pedras e pedaços de madeira em policiais –um deles ficou ferido após ser atingido na cabeça.

Heitor conta que estava sentado em um dos bancos da praça, fumando crack. Policiais fizeram um "paredão" na av. Rio Branco e dispararam bombas de efeito moral e balas de borracha. "Um policial olhou diretamente para mim. Estava a uns quatro metros de distância. Levantei do banco e na hora senti um impacto no rosto", relatou à reportagem.

De acordo com a PM, Heitor foi identificado como um dos agressores (leia mais abaixo). Ele nega qualquer atitude nesse sentido –diz que, naquele momento, estava somente fumando crack. Quem o socorreu foi uma figura famosa na cracolândia: José Carlos de Matos, 47, conhecido como "pastor", homem que todos os dias distribui pão e água aos usuários.

"Vi usuários jogando paus e pedras em dois policiais. Fui separar, tentando conter usuários. Consegui reverter a situação e tudo se acalmou. Daí policiais tomaram a calçada e começaram a atirar e jogar bombas", lembra o pastor.

Ele afirma que ele mesmo foi atingido por um tiro de borracha nas costas. "Foi quando começaram a gritar por socorro, e então eu vi que um rapaz tinha levado um tiro no olho." Ele o conduziu até uma ambulância do Samu. Não teve jeito: Heitor ficou cego de um olho.

PRESO NOS EUA

Como Heitor foi parar na cracolândia? "Venho de uma vida de abuso de drogas", diz ele, nascido em São Bernardo do Campo, na Grande SP. "Comecei a usá-las aos 14 anos." Na época, ele morava com a família em Nova Jersey, nos EUA, onde os pais, com seus três filhos, foram viver ilegalmente em busca de uma vida melhor. Sua mãe trabalhava com faxina; seu pai reformava casas.

"Ficávamos muito tempo em casa sozinhos. Morávamos em um bairro legal, mas tínhamos acesso a drogas. Meu irmão mais velho começou, e eu fui atrás. Um dia vi ele derretendo cocaína na colher para fazer crack e daí não paramos mais", afirma.

Nos EUA, os irmãos entraram e saíram de várias clínicas de reabilitação. Em uma das saídas, foram pegos em um assalto a mão armada. Ficaram presos de 2007, quando Heitor tinha 19 anos, a 2012, quando foram deportados para o Brasil. Foram viver com os avós em Poços de Caldas, no interior de Minas.

"Ele sempre estudou em colégios bons, é um menino muito meigo, carinhoso, e por isso a gente tolerou, confiando que, com amor, iríamos vencer o vício", diz sua avó, Ivone de Oliveira, 72.

Com inglês fluente, passou a trabalhar em hotéis e dando aulas do idioma, mas sempre voltando para as drogas. Fez um curso para ser monitor de clínicas de reabilitação e, neste ano, foi trabalhar em uma em Cotia, na Grande SP.

"Tive recaídas e vim para São Paulo. Depois de algumas semanas estáveis, piorei de vez. Fui para a cracolândia", conta. "Me entreguei total, passei quase dois meses lá, todos os dias, toda hora." Em junho, buscou ajuda no Cratod, o centro de referência de drogas do governo do Estado. Ficou acertado que ele seria levado a uma comunidade terapêutica no dia 16.

Às 7h30, ele se reportou. Consta em sua ficha que ele se apresentou, mas evadiu antes de ser levado à comunidade terapêutica. "Estavam demorando muito, eu tinha passado a noite sem dormir e estava com muita vontade de usar droga", diz. Voltou para a cracolândia, onde, no dia seguinte, seria ferido no olho.

Segundo a Secretaria Estadual da Saúde, não houve demora, e Heitor saiu do local às 11h, uma hora antes do horário previsto para a saída.

DIÁLOGO E FORÇA

Heitor diz ter passado ao menos dois dias algemado em uma maca no hospital, com dois policiais na porta de seu quarto. O defensor público Carlos Weis, coordenador do núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, diz que "todas as pessoas têm liberdade de locomoção e a polícia só pode reprimir se a pessoa tiver cometido um crime ou se tiver um mandado policial". "Fora isso, é ilegal", afirma.

Quanto à ação na praça Princesa Isabel, ele ressalta que a polícia "deve usar os meios menos letais possíveis, proporcionais àquilo que está acontecendo". E diz: "Esse tipo de armamento deve mirar da cintura para baixo".

Dos Estados Unidos, seu pai, Hélio Fonseca, 53, critica o despreparo da polícia. "Não dá para atirar no rosto. É muita violência. Mudou totalmente a vida dele, a nossa, a dos irmãos. O que ele vai fazer agora?", questiona. "As pessoas ali estão precisando de ajuda, não de esculacho."

Para Heitor, "os usuários de drogas são tratados como bichos". "Querem dialogar com força. Em vez de usarem uma palavra, um gesto, tiraram minha visão", diz.

"AGRESSÃO"

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública do governo Geraldo Alckmin (PSDB) afirmou que Heitor Mira Fonseca agrediu a Polícia Militar na ação em que ele teve o globo ocular do olho esquerdo destruído. De acordo com a pasta, naquele dia uma equipe do patrulhamento da PM foi atacada ao tentar abordar suspeitos de tráfico perto da praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo. Um soldado ficou ferido.

"O Comando de Choque foi acionado para reforçar o patrulhamento da região com uso de técnicas de controle de distúrbios civis (CDC) e o trânsito foi alterado no entorno da praça. A situação foi controlada e o caso registrado pela Polícia Civil", diz a nota.

"Um dos agressores da PM foi identificado como sendo Heitor Mira de Oliveira Fonseca, que foi ferido no olho esquerdo e socorrido para o Pronto-Socorro da Santa Casa", completa o comunicado. A secretaria afirma ainda que o caso foi encaminhado ao 3º DP (Campos Elíseos) e que foram solicitados exames de corpo de delito aos envolvidos na ocorrência.

A pasta não respondeu se ele de fato ficou algemado por ao menos dois dias na maca do hospital nem deu justificativas para tanto. A Santa Casa também não se pronunciou sobre esse fato.

SAÚDE

Em relação à atuação do Cratod, o centro de referência de drogas do governo do Estado de São Paulo, a Secretaria da Saúde afirmou que "não houve nenhuma demora no caso".

"Heitor compareceu ao Cratod na manhã do dia 16, foi avaliado por equipe multiprofissional e orientado quanto à organização de bagagens, separação de medicação e alimentação. Entretanto, evadiu às 11h, uma hora antes do horário programado para saída", diz a pasta. "Não houve, portanto, nenhuma anormalidade no atendimento ao paciente."


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