Folha de S. Paulo


Crise em universidade estadual do Rio afeta saúde de alunos e professores

Leonardo Wen/Folhapress
O enfermeiro Rafael Lima, que faz residência no hospital universitário, não recebe bolsa há meses
O enfermeiro Rafael Lima, que faz residência no hospital universitário, não recebe bolsa há meses

"Esta semana acordei sem vontade de dar aula. Sabemos que temos uma responsabilidade social de manter a universidade funcionando, mas como dar conta dessa maneira, se não sabemos como será o amanhã? Nos sentimos à deriva. Estamos todos, alunos e professores, nos deprimindo e adoecendo."

O desabafo da professora de nutrição da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Elda Tavares, 50, ecoa o que dizem alunos, docentes e funcionários: a crise por que passa a universidade, a maior de sua história, tem provocado um abatimento generalizado.

A angústia tem motivos materiais. Professores recebem seus salários parcelados e com atraso. Na última semana, receberam uma parcela do salário referente a abril. Do 13º salário de 2016 não há nem sinal.

São docentes como o engenheiro químico Evandro Brum Pereira, 61, que resolveu protestar contra a falta de pagamento postando uma foto nas redes sociais onde segura um cartaz em que se lê seu impecável currículo e a pergunta: "Alguém pode me arrumar um trabalho? Afinal, preciso pagar minhas contas".

Primeira universidade do Brasil a estabelecer cotas sociais, em 2003, a Uerj tem os bolsistas também recebendo "pingado". O restaurante popular está fechado e as bibliotecas operam em regime de rodízio.

"Quando ficamos muitos meses sem receber a bolsa, chegou a um ponto em que eu não tinha mais dinheiro para ir à faculdade, e se tivesse, não teria para comer", diz o residente de enfermagem Rafael Lima, 34, que mora em Olaria, na zona norte, a cerca de 9 km da universidade.

"Fiquei muito mal, cheio de dívidas. Acordava e não queria levantar para ir à aula. Era um sonho estudar no hospital da Uerj, larguei um emprego para isso. Mas me pergunto se valeu a pena porque não estou tendo a formação que esperava."

Com capacidade para 512 leitos, o Hupe (Hospital Universitário Pedro Ernesto) anunciou na semana passada que passará a trabalhar com apenas 100, o que deixará pessoas sem atendimento e compromete o estudo dos residentes da universidade.

Agora, paira sobre a universidade a dúvida sobre se haverá ou não greve após o retorno das férias de julho.

DEPRESSÃO

Entre os alunos, as palavras mais repetidas quando se fala na crise são "impotência", "frustração" e "incerteza".

A Faculdade de Ciências Médicas, a única que oferece serviço de atendimento psicológico exclusivo para seus alunos, tem alguns exemplos. A depressão já é mais prevalente entre os estudantes de medicina do que na população em geral, devido a pressão natural do curso.

Silas Escobar, 28, residente no Hupe, diz que acompanhar o dia a dia do hospital tem sido difícil. "Às vezes a gente precisa atender a um paciente e não tem vaga para internar. Você fica abalado, se coloca no lugar daquele doente, cria um vínculo, mas não pode fazer nada por ele."

Quem ocupa posições de liderança também se abala. "Outro dia havia quatro alunos aqui na minha sala me perguntando se nós temos como garantir que a formação deles não seria afetada. Eu tive que dizer que não, não tenho. Isso, para mim, é uma facada", diz a vice-diretora da Faculdade de Ciências Médicas, Anna Tereza Miranda Soares de Moura.

"Tenho sentido entre os docentes muitos indícios de síndrome de burnout [esgotamento]", diz Alessandro Gemino, coordenador do Núcleo de Apoio Psicopedagógico ao Residente. "As pessoas não aguentam mais, querem deixar a universidade."

A crise teve impacto também na estrutura do serviço de apoio psicológico que a Uerj oferece. O Nace (Núcleo de Acolhida ao Estudante), onde alunos podem buscar ajuda em situações de crise, está sem psicólogos, e apenas a coordenadora, Maria Christina Maioli, atende.

Ela diz que não observou um aumento significativo do número de pessoas que procuram o serviço, mas que é inegável que a crise está abalando a saúde mental dos alunos. Neste ano, já houve um suicídio, o que está dentro da média da universidade, que é de quase dois por ano.

Como diz a coordenadora do Pape, (Programa de Apoio Psicopedagógico ao Estudante de Medicina), Sandra Terra, cada um lida com a situação como pode. "Uns se deprimem, outros se desesperam."

De maneira geral, junto com o sofrimento tem havido na universidade um espírito de luta. Nas paredes dos corredores vê-se cartazes dizendo "Uerj resiste", "calouros, a Uerj vale a pena". Diversos atos de protesto têm sido organizados.

O Pape promove atividades para manter os alunos integrados e participando da vida no hospital universitário, mesmo que eles estejam nos primeiros anos de ensino e por isso não possam de fato atender pacientes.
"Tem sido muito bom para mim falar com as famílias deles e ver o quanto a gente pode mudar as vidas, o quanto a gente é necessário", diz Urias Furquin, 20, do segundo ano de medicina.


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