Folha de S. Paulo


Apesar de decisão superior, bairros ainda viram condomínios pelo país

Em 1988, a publicitária Margaret Matos comprou um terreno em um loteamento aberto em Cotia, na Grande SP, e comemorou que enfim se livraria do aluguel. Mas, em menos de três décadas, perdeu sua casa por não pagar a taxa de condomínio –mesmo sem nunca ter vivido em um.

Nesse meio tempo, moradores do loteamento formaram uma associação, que fechou o acesso às ruas, construiu uma portaria e contratou funcionários. Foi instalado até um sistema de biometria para identificar motoristas que entravam no residencial, que jamais teve status de condomínio.

Em meados dos anos 2000, a associação processou os quase 90 moradores que não pagavam a "contribuição obrigatória". Margaret, como a maior parte dos processados, fez um acordo, mas não conseguiu pagar a "dívida".

Em 2015, sua casa foi leiloada. A Justiça entendeu que houve enriquecimento ilícito, uma vez que ela tinha benefícios como limpeza e segurança, mas não pagava por eles.

Assim como ela, pessoas em todo o país passam por situação similar: veem os bairros em que moram se transformarem aos poucos em condomínios fechados. Com isso, são obrigadas a pagar por serviços que deveriam ser fornecidos pelo poder público.

Há dois anos, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) entendeu que a cobrança fere a Constituição, que diz que "ninguém poderá ser compelido a associar-se ou permanecer associado". Mas isso não freou a formação desses condomínios, tampouco os processos judiciais.

Zanone Fraissat/Folhapress
SAO PAULO/SP BRASIL. 25/05/2017 -Margaret Matos, 54, aposentada, moradora prejudicada - Moradores se juntam e começam a gerir loteamentos como um condomínio fechado, cobrando taxas por benfeitorias mesmo de pessoas não associadas. Se a pessoa se recusa a pagar, pode responder a processo na Justiça e até perder a casa.(foto: Zanone Fraissat/FOLHAPRESS, COTIDIANO)***EXCLUSIVO***
A aposentada Margaret Matos, 54, perdeu a casa, em Cotia, Grande SP

Na prática, a decisão significa que casos na instância superior serão decididos a favor dos processados, o que não impede decisões diferentes em instâncias inferiores, o que acontece com frequência.

"Minha sogra estava doente e morava comigo, eu tinha filho menor de idade e mesmo assim perdi minha casa. Abalou todos", diz Margaret.

EMPOBRECIMENTO

Se, por um lado, moradores aceitam pagar taxas por benefícios como segurança e limpeza, por outro, o poder público economiza por não ter que ofertar esses serviços a uma parcela da população.

Por isso, para o procurador paulista José Carlos de Freitas, que acompanha casos do tipo no Ministério Público Federal, não há enriquecimento ilícito de quem se recusa a pagar as contribuições.

"Há, na verdade, um empobrecimento ilícito, porque as pessoas têm que pagar duas vezes: pagar ao Estado, na forma de impostos, e às associações, na forma das taxas compulsórias", diz Freitas.

Para ele, há mais um problema. "Você privatiza o espaço público e impede que os demais usufruam do que há ali", afirma o procurador.

O advogado Simcha Schaubert se especializou nesse tipo de ação. "Muita gente perdeu sua capacidade financeira nos últimos tempos e não consegue mais pagar. Esse tipo de loteamento é comum no interior de São
Paulo, em Cotia, Vinhedo. E os valores vão de R$ 200 a mais de R$ 1.000."

Ações como essas são comuns em todo o país. Em Juiz de Fora (MG), por exemplo, o professor Alex Reis, 46, deixou de pagar as taxas em 2015, ao descobrir que o local onde morava não era um condomínio regularizado.

"Não me processaram, mas começou uma série de constrangimentos, como dificuldade para abrir o portão. Pararam também de entregar minhas cartas", afirma ele.

BOLSÕES

Parte dos loteamentos fechados em Cotia tem status de "bolsão residencial", conferido pela lei municipal 694 de 1994. O texto permite que associações controlem o acesso a esses locais, desde que "seja assegurada a livre circulação de veículos e pedestres o interior do perímetro definido".

Hoje, existem 78 bolsões autorizados, segundo a Prefeitura de Cotia. É num desses que fica o Horizontal Park, onde vivia a publicitária Margaret Matos. No local, há guarita e guardas.

Até poucos meses atrás, a associação controlava o acesso dos moradores com biometria, mas o Ministério Público determinou que as cancelas fossem retiradas do local.

A reportagem procurou representantes da associação de moradores no local e tentou duas vezes contato por telefone, mas não obteve retorno.

Lá também vivia Elias Peinado, 57, que trabalha com transporte escolar. Ele soube do desfecho de seu processo por vizinhos. "Nem me ofereceram, um dia meus vizinhos disseram: 'Você viu que sua casa foi arrematada?' Fiquei desesperado", afirma ele, cuja casa, diz, valia R$ 800 mil, e foi leiloada por R$ 230 mil.

"Além de tudo, ainda estou sendo processado porque parei de pagar o financiamento da casa."

PLACAS

A Folha visitou ainda outros dois loteamentos vizinhos. Em nenhum deles o acesso foi proibido, mas foi preciso dar nome e justificar o motivo da visita. Em um dos condomínios visitados foi preciso deixar o documento de identidade na portaria.

Em todos, as ruas têm placas com CEP e os postes de iluminação são da Eletropaulo, como quaisquer outras ruas da cidade. As casas são, em geral, de classe média alta.

O Ministério Público de São Paulo questiona, no STF, a constitucionalidade da lei municipal que permite a existência dos bolsões residenciais.

Em parecer, a Procuradoria-Geral da República chama os bolsões de "ilhas populacionais (...) em detrimento do bem-estar e da ampla integração de serviços, pessoas e circulação que caracterizam o núcleo urbano e concretizam a função social das cidades imposta na Constituição".

O Ministério Público Federal diz ainda que "a segurança de uns não pode segregar os demais do acesso aos equipamentos urbanos das cidades". (TA)

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