Folha de S. Paulo


THEREZINHA BRANDOLIM DE SOUZA, 86

Trabalhadora rural aprende a ler aos 82 anos e vira artista plástica

Pierre Duarte/Folhapress
Therezinha Brandolim, 86, alfabetizada aos 82 anos e que hoje faz obras com chita (tecido simples de algodão)
Therezinha, 86, alfabetizada aos 82 anos e que hoje faz obras com chita (tecido simples de algodão)

Resumo - Tetê Brandolim, como é chamada, diz que nasceu duas vezes: a primeira quando veio ao mundo, em 1930, e, 82 anos depois, ao realizar o sonho de aprender a ler e escrever. Alfabetizada pelo método Paulo Freire, a neta de imigrantes italianos se descobriu artista plástica e retrata em tela o florescer de uma nova vida na terceira idade. Já são mais de 400 obras feitas por Tetê com chita (tecido simples de algodão).

*

Nasci na zona rural de Monte Azul Paulista (SP) e, mais velha de seis irmãos, sempre ajudei meus pais, que eram colonos na fazenda onde morávamos.

Trabalhava em meio a plantações de milho, arroz, feijão, algodão. Ainda criança, cheguei a frequentar a escola. Mas vinha a época da colheita, e meus pais acabavam me tirando da sala de aula, para ajudá-los na lavoura.

Isso aconteceu várias vezes. Quando eu estava pegando o jeito, tinha que abandonar os estudos. Chegou uma hora que acabei desistindo. Continuei trabalhando na roça na adolescência e na vida adulta.

Conheci o Valdo, meu marido, aos 18 anos. Um ano depois já estávamos casados. Aos 21 anos tive o meu primeiro filho, José Carlos.

Pensando em uma vida melhor, nos mudamos no início da década de 1950 para Icaraíma [no noroeste paranaense], para trabalhar na lavoura de café. Foi lá que tive os meus outros quatro filhos: Pedro, Maria Zulmira, Rosalinda e Sueli.

A gente trabalhou, mas não conseguiu prosperar muito. Foram quase 20 anos em Icaraíma e nada de a vida melhorar. Aí arrumamos as trouxas e fomos parar em Ribeirão Preto [a 313 km de São Paulo]. Meu cunhado morava na cidade na época.

Meu filho mais velho alugou uma casinha para nós –sete pessoas dividindo uma casa de três cômodos.

Meu marido, alfabetizado, começou a trabalhar como vigilante, e eu consegui um emprego de faxineira em uma rádio. Em 1984, o Valdo faleceu. Continuei trabalhando na rádio e depois passei a fazer faxina em uma agência bancária.

FRUSTRAÇÃO

Nessa época, inclusive, passei por uma das situações mais constrangedoras por não saber ler. Saí do banco às 22h. A agência ficava no centro, mas como era noite acabei me perdendo. Fui andando sem rumo, até que cheguei à região do mercado municipal e pedi ajuda a um morador de rua.

Por sorte, ele disse que se eu seguisse reto chegaria à avenida Francisco Junqueira. Era o único nome de avenida que eu conhecia, ficava a duas quadras da minha casa. Era quase meia-noite quando cheguei. Fiquei uma hora e meia para fazer um percurso que normalmente levaria minutos.

Nunca deixei de querer aprender [a ler e escrever]. Depois de me aposentar, resolvi correr atrás do sonho. Frequentei vários programas de alfabetização para adultos, mas nunca dava certo, não conseguia assimilar.

Foram mais de 15 anos tentando e aquela frustração. Só sabia escrever meu nome. Apesar de já sentir que aquilo era uma vitória, eu sabia que era uma coisa decorada, né?

ALFABETIZAÇÃO

Depois de todos esses anos tentando em vão, em 2013, minha filha Maria Zulmira, que mora em São Paulo, conheceu a Jany, especialista em alfabetização de adultos e que usa o método Paulo Freire para ensinar.

Conversamos, e ela perguntou o que eu sabia fazer. Conhecia todas as letras, mas não assimilava, não sabia juntá-las. A partir daí começamos uma jornada diferente de tudo que já tinha visto em salas de aula.

A primeira coisa que aprendi foi escrever o nome dos meus filhos. Foi aí que a Jany disse: 'O que a senhora mais gosta de fazer?' Respondi que era o meu pão caseiro, tradição na família.

Aprendi a escrever a receita do meu pão. Foi assim, usando as coisas do meu dia a dia, que, em seis meses, finalmente fui alfabetizada.

O contato com a chita foi nas aulas com a Jany. Ela sugeriu que eu fizesse cartões de Páscoa para os meus filhos. Para decorar, peguei retalhos que ela havia levado e fui colando no papel.

Naquele momento, eu relembrei minha infância. Usávamos roupas de chita, aquilo fazia parte da minha vida.

Sobrou tecido, levei para a casa da minha filha, pedi para ela comprar cartolina e comecei a compor um quadro. Concluí o primeiro e não parei mais. Hoje tenho mais de 400 obras.

Pierre Duarte/Folhapress
Therezinha Brandolim, 86, alfabetizada aos 82 anos e que hoje faz obras com chita (tecido simples de algodão)
Therezinha, 86, alfabetizada aos 82 anos e que hoje faz obras com chita (tecido simples de algodão)

SUCESSO

Depois de me alfabetizar e descobrir a arte com a chita, tudo mudou. Fiz exposições em vários lugares. A primeira foi em Águas de Lindoia (SP). Depois veio Ribeirão, Brodowski (SP) e São Paulo, onde tenho uma galeria permanente.

Participei até de uma mostra em Boston (Estados Unidos). Tenho quadros no Brasil, nos EUA, na Alemanha e na Austrália.

Às vezes fico pensando, foi tanta coisa que fiz em tão pouco tempo... Recebi medalhas pelos quadros, fui homenageada em um livro sobre personalidades brasileiras, viajei para Itália, Alemanha, Chile.

Meu próximo destino é Nova York. A princípio, para passear. Mas, se tiver a oportunidade de expor lá, seria mais especial ainda.

Eu renasci. Sou outra pessoa. E digo sempre: corram atrás dos objetivos. Nunca abri mão do meu sonho de ser alfabetizada.

A arte saiu do coração, só estava adormecida. Eu mudei e nasci para uma nova vida.


Endereço da página: