Folha de S. Paulo


Comunidade terapêutica é risco para viciado instável, diz líder do Cremesp

O médico psiquiatra Mauro Aranha, 58, presidente do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), diz estar preocupado com os interesses privados envolvendo comunidades terapêuticas que atuam na recuperação de usuários de drogas retirados da cracolândia, no centro paulistano.

Segundo ele, por lei, não se pode fazer tratamentos de saúde nesses locais, que são equipamentos sociais, não médicos. "Uma pessoa clinicamente instável ser internada numa comunidade terapêutica não só é um crime como é uma situação de muito risco ao paciente", afirma.

As comunidades terapêuticas são instituições privadas, sem fins lucrativos, muitas vezes religiosas, e financiadas pelo poder público. Por lei, só podem oferecer acolhimento a dependentes.

Elas têm sido uma das principais apostas das gestões Geraldo Alckmin (PSDB) e João Doria (PSDB) para receber viciados vindos da cracolândia.

Aranha diz que a síndrome de abstinência é um quadro clinicamente instável, que pode gerar complicações cardiovasculares e renais e até a morte. "Não pode ser conduzido numa comunidade terapêutico", afirmou à Folha.

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Adriano Vizoni/Folhapress
O psiquiatra Mauro Aranha, presidente do Cremesp
O psiquiatra Mauro Aranha, presidente do Cremesp

RAIO-X: MAURO ARANHA, 58

Formação: Graduado na Faculdade de Medicina da USP, com mestrado em psiquiatria

Cargos anteriores: Ex-presidente do Conselho Estadual de Políticas Sobre Drogas (2010 a 2012) e presidente do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do SP) desde abril de 2016

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Como o sr. avalia a rede de atendimento à saúde mental em São Paulo?
De uma forma geral, ruim. Quando se precisa de internação de paciente com risco iminente de morte, o ideal seria que fosse feita em enfermaria psiquiátrica. Porém, temos pouquíssimos leitos.
Quando o caso requer internação, mas não há risco de morte, um doente psicótico, por exemplo, ele pode ser internado em hospital psiquiátrico não manicomial. Agora, mesmo que de forma atropelada por causa da operação na cracolândia, os leitos estão sendo disponibilizados.

Quais os principais gargalos?
No caso do crack, vejo três. O primeiro é essa miserabilidade e vulnerabilidade social de pessoas que acabam em situação de rua, consumindo uma droga barata e tóxica.
O outro são os casos de instabilidade clínica ou psicóticos internados em comunidades terapêuticas. Ficam lá meses a fio, e o caso só se agravando. E o terceiro são as poucas vagas de internação. Elas não são o eixo central do planejamento terapêutico do dependente, mas, quando você precisa internar crianças e adolescentes, não tem leito.
E os Caps?
Os Caps [Centros de Atenção Psicossocial-Álcool e Drogas, que oferecem consultas com médicos e psicólogos] visam a reabilitação psicossocial. Quando a situação exige uma atuação mais intensiva, não são os melhores equipamentos. Outro problema é quando se trata de criança ou adolescente vitimado pela droga. Os Caps de infância ainda são poucos e precisam de muita qualificação.
Quando um adolescente precisa ser internado, só há um ou dois hospitais na cidade de São Paulo que aceitam esse tipo de internação e são poucos leitos. Muitas vezes o adolescente é internado em enfermarias de adultos, o que pelo ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] é proibido.

O sr. mencionou as comunidades terapêuticas. Qual o risco?
No interior, temos um grande número de comunidades terapêuticas que nos preocupa muito. Por lei, elas são um regime de residência voluntária. Elas não podem fazer internações compulsórias ou involuntárias. Elas não são um equipamento de saúde, são um equipamento social.
Portanto, uma pessoa clinicamente instável ser internada numa comunidade terapêutica não só é um crime legal como é uma situação de muito risco ao paciente.
E tem famílias que, na falta de equipamentos médicos, levam para lá seus familiares drogaditos, mesmo contra a vontade, e eles ficam por lá seis meses numa situação que caracteriza cárcere privado.
As comunidades terapêuticas não são fiscalizadas por nenhum órgão público. Por exemplo, o Cremesp só pode fiscalizar quando recebe uma denúncia de que há tratamento médico lá dentro.
Não se pode fazer tratamento de saúde em comunidade terapêutica. Essa é outra preocupação dessa atual fase da operação na cracolândia.
Infelizmente, existem muitos donos de comunidades terapêuticas e de instituições, algumas delas religiosas, com interesses privados.

Qual o perigo que correm pacientes que são tratados nessas comunidades?
A síndrome de abstinência é um quadro clinicamente instável, que pode até levar à morte. Pode gerar convulsões, desequilíbrios hidroeletrolíticos [que causam complicações renais e cardiovasculares]. É um quadro que não pode ser conduzido numa comunidade terapêutica. Isso vale para abstinência do álcool, de cocaína e crack.

Como minimizar esses riscos?
Existe uma resolução recente da Secretaria Municipal de Saúde que cria comunidades terapêuticas de natureza médica. Mas elas também não podem fazer internações involuntárias e não dão conta de casos clinicamente instáveis.
Para esses, tem que ser o hospital, preferencialmente o hospital geral. Uma coisa é você tratar uma convulsão ou uma parada cardiorrespiratória num hospital psiquiátrico, outra é num hospital geral. Em hospital psiquiátrico, não há aparato para isso, não há intensivistas, por exemplo.

Como deve ser o tratamento do dependente químico?
Precisa existir planejamento terapêutico individualizado, cada usuário tem o seu percurso. Pode ser ambulatório, centros de convivência, internações temporárias. Mas se falta uma interligação entre os equipamentos da rede, não haverá eficiência no final do percurso de tratamento.

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Cracolândia (no último mês)

21.mai
A polícia de SP, da gestão Geraldo Alckmin (PSDB), realiza uma das maiores operações de combate ao tráfico de drogas na região -50 pessoas são presas
e a feira ilícita a céu
aberto é desmantelada. João Doria (PSDB) diz que "a cracolândia acabou", mas usuários continuam comprando drogas nas imediações. Apesar de ter sido articulada entre Estado e município, ação expôs atritos entre as duas administrações

22.mai
Gestão Doria cerca a antiga cracolândia com guardas municipais, que fazem revistas para impedir que dependentes voltem a se instalar. Ministério Público abre inquérito para investigar desvio de função da GCM e ação inadequada da PM ao dispersar usuários

23.mai
Três ficam feridos após prefeitura iniciar demolição de uma pensão ainda ocupada na área. Doria vai embora e deixa que secretários deem explicações. Comércios também são lacrados com muros antes que proprietários retirassem pertences

24.mai
Três dias após ação, Doria não cumpre projeto de assistência negociado com órgãos civis, e nova cracolândia surge a 400 metros,
na pça. Princesa Isabel. Prefeitura pede a tribunal carta branca para internar usuários à força. Secretária de Direitos Humanos, Patrícia Bezerra, pede demissão

28.mai
Justiça decide que gestão Doria não poderá recolher usuários de droga à força na cidade, como pleiteava a prefeitura

11.jun
Nova operação da PM, desta vez na pça. Princesa Isabel, desmonta barracos dos usuários. Eles voltam ao local horas depois, mas revistas da GCM e da polícia impedem montagem de tendas

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