Folha de S. Paulo


Prefeitura de SP paga a moradores de rua que pedirem para deixar a cidade

Mariana Zylberkan/Folhapress
Praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo, onde polícia faz operação na manhã deste domingo (11)

A Secretaria Municipal de Assistência Social em São Paulo quer pagar passagens de volta aos Estados ou cidades de origem a pessoas em situação de rua ou usuários de drogas na capital. A informação foi dada ao UOL, nesta segunda-feira (12), pelo secretário Filipe Sabará. Segundo ele, entretanto, apenas quem manifestar o interesse em deixar a cidade terá a situação avaliada pelo município.

De acordo com o secretário, já existe no âmbito da pasta programa municipal com essa finalidade. "A proposta é ampliar isso, mas os termos e condições serão definidos até o fim deste mês", disse.

Nesse domingo (11), Sabará publicou em dois perfis dele no Facebook texto e vídeo em que anunciava ter providenciado a volta de um suposto usuário de drogas a São Luís, no Maranhão.

Limpeza na praça Princesa Isabel

Mais cedo, uma ação da Polícia Militar e da Prefeitura havia desocupado a praça Princesa Isabel, área que se tornou a nova cracolândia da cidade após ação do Estado e do município, no último dia 21, na região da rua Helvétia e da alameda Dino Bueno. Após a desocupação e a limpeza da praça, porém, os usuários novamente migraram ao espaço.

"Para fechar o dia com chave de ouro, estou levando o Antônio que foi resgatado das ruas hoje, após a ação contra o tráfico, para a rodoviária e o presenteando com uma passagem para sua terra natal no Maranhão. Ele veio para São Paulo buscar oportunidades de trabalho, mas não conseguiu e acabou nas ruas e nas drogas. Agora ele vai reencontrar sua esposa que está grávida e esperando ansiosamente por ele!", escreveu Sabará sobre o rapaz.

Em um vídeo gravado ao lado do homem, identificado apenas como "Antônio", o secretário explicou que ele havia procurado ajuda em uma unidade de atendimento emergencial da prefeitura.

"Ele veio para São Paulo buscar oportunidade e acabou indo parar na rua", diz o secretário, no vídeo. "Foi muito bom lá [na unidade de atendimento emergencial]; tomei banho, comi, me deram escova de dente, toalha, cobertor... é muito bom lá. Quem estiver na rua que vá para lá", completa Antônio. "Agora, vamos encaminhar você para a rodoviária. Vamos embora para a terrinha visitar a família", completa Sabará, que exibe o kit recebido por Antônio com escova de dente, toalha, sabonete e cobertor". "[Mas está] Voltando para a terrinha com dignidade", observa o secretário, referindo-se ao kit.

Indagado nessa segunda (12) sobre quem financiou a passagem a São Luís, Sabará disse tê-la pago "do meu próprio bolso".

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Se ele ou a administração farão isso a outras pessoas que queiram retornar à terra natal? "A prefeitura já tem essa política na secretaria, mas vai ampliá-la porque tem muita gente querendo voltar para suas casas, em outros Estados, especialmente no Norte e Nordeste e a Estados do Sul, como Paraná. É gente que veio em busca da promessa de oportunidades, não conseguiu, mas estava com vergonha de voltar", disse.

Ainda conforme o secretário, o critério em relação a quem receberá ou não passagens vai considerar "quem está cadastrado e em abrigos" atendidos pela prefeitura. Ele negou que a ação tenha qualquer verniz de "limpeza" ou "higienismo" -como entidades de direitos humanos se posicionaram, nas últimas semanas, em relação à ação sobre os usuários.

ALTERNATIVA FRÁGIL

Para o coordenador da Pastoral de Rua da Igreja Católica, padre Júlio Lancelotti, o retorno de pessoas em condição de vulnerabilidade a suas cidades ou Estados de origem "precisa ser uma alternativa, e não a alternativa única dada a essas pessoas".

"Tem muitas pessoas que solicitam ajuda para esse retorno, mas o trâmite é burocrático, lento. Tem cidades no interior de São Paulo que facilitam a vinda de gente para a capital, mas porque não a querem por lá. Só que mandá-los de volta exige o cuidado de que não seja uma saída forçada", afirmou Lancelotti.

"Alguns não têm mais como voltar e nem sempre conseguem telefonar aos parentes por meio dos serviços municipais. Outros querem restabelecer contato, apenas, e há os que foram expulsos, caso de alguns LGBTs, os quais a família não quer mais, e que aos quais não adianta pagar uma passagem de volta, simplesmente", considerou.

Na opinião do coordenador da pastoral, "tem que ver de onde parte a vontade de ir". "É estranho um secretário ter que pagar por isso, quando deveria ser uma política do município, mas desde que se veja o drama humano de cada um. Para alguns, voltar é possível, viável e desejável; para outros, é inviável. Até desejam, mas não têm estrutura para se restabelecer em suas cidades ou Estados. A população de rua é muito heterogênea, e a linha entre se querer ajuda-la ou fazê-la desaparecer da vista das grandes cidades é sempre muito tênue", finalizou.

HIGIENIZAÇÃO FORÇADA

Professor de direito constitucional na FGV (Fundação Getúlio Vargas) em São Paulo, o advogado Roberto Dias vê a iniciativa da administração com ressalvas.

"Se o poder público pretende apurar ou verificar quem está nessa situação de vulnerabilidade e determinar que essa pessoa deixe a cidade, está claramente violando previsões da Constituição Federal -que é explícita em afirmar que as pessoas podem transitar pelo território nacional sem qualquer restrição, a não ser as que, por decisão judicial, estão encarceradas", disse.

"Se a pessoa efetivamente tiver interesse em sair da cidade, nada impede que ela vá, desde que seja uma vontade genuína. O que não é possível é exigir que, por via direta ou via transversa, ela saia de uma cidade e vá para outra –em que 'transversa' é aquela situação de que é como se ela tivesse sido consultada a sair, quando, na realidade, é uma forma camuflada de forçá-la a sair da cidade. Isso também é inconstitucional", sustentou.

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ações na cracolândia

Na avaliação do advogado, "o administrador público não pode admitir, com o pretexto ou suposta alegação de querer preservar um direito, violar outro direito".

"Se for uma ação prevista em lei e se tiver rubrica orçamentária para tal, e se efetivamente for algo pela proteção de direitos, há respaldo constitucional. Mas não me parece que seja, tudo indica que é uma tentativa de higienização", classificou Dias.

AÇÃO GENUÍNA

Já a professora de direito internacional e comparado da USP (Universidade de São Paulo) Maristela Basso defende que, sob a perspectiva humanitária, ainda que não tão específica a um caso como o analisado, "é louvável" que a administração providencie passagens a quem quiser retornar ao local de origem.

"Por razões humanitárias, espera-se que faça isso em um mundo onde humanidade e misericórdia desapareceram. É até louvável que se encontre isso - e se o gestor público pode? Ele deveria fazer isso na medida em que a função do Estado é prover a saúde e o bem-estar da população, ainda que isso esteja na possibilidade de retornar alguém para a sua família", explicou.

Eventuais críticas a uma tentativa de se mandar para fora da cidade pessoas em situação de rua ou drogadição, na avaliação da advogada, "se devem ao fato de que estamos acostumados com uma autoridade municipal ausente; quase como se estivéssemos sem um pai. De repente, você tem uma prefeitura que deixa ser ausente e passa a ser interveniente. Aí é normal que se pergunte: será que a prefeitura não está intervindo demais?"

Basso, que é membro do conselho consultivo da prefeitura, sem remuneração, afirmou que, a exemplo do tratamento compulsório de usuários de crack, o envio dessas pessoas a suas terras-natal é medida prevista no Programa Redenção –principal bandeira do prefeito João Doria (PSDB) para lidar com o vício de crack na cidade.

"Essa é uma faceta do programa Redenção, que é muito mais amplo e implica, por exemplo, em internação compulsória e voluntária ou involuntária a pedido da família. Mas o projeto prevê que esse retorno à cidade de origem averigue se há uma família e um assistente social que amparem esse usuário quando ele chegar – não e só colocar ônibus. Não é simplesmente um despejo da pessoa em algum lugar. É uma outra porta que se abre para que ela continue se cuidado", definiu.

Questionada sobre o fato de o Redenção ainda não estar regulamentado em lei, a advogada mencionou que "ele não é perfeito, será algo para ser aperfeiçoado via aliança entre Estado e prefeitura este ano e na primeira metade de 2018", mas admitiu que não há dotação orçamentária já definida para a questão das passagens.

"Vai ter que ter previsão orçamentária; vai ter que tirar de algum lugar. Mas acredito que serão muito poucos os casos. O usuário abrigado pelos seus afetos tem muito mais chance de se recuperar", ponderou.

OUTRO LADO

A Prefeitura de São Paulo lamenta a leviandade das palavras do professor Roberto Dias. Suas declarações não se apoiam em fatos e demonstram ignorância sobre a existência de um programa da Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social que desde 2003 ajuda migrantes que desejam retornar a suas cidades de origem, sempre de maneira articulada com entidades dos outros municípios e apenas se por vontade expressa da pessoa. No ano passado, 1.416 pessoas foram beneficiadas.

Ainda segundo a prefeitura, a pasta da assistência social conta com o Centro de Referência do Migrante. Criado em 2003, no Terminal Rodoviário Tietê, o centro é um serviço que dá suporte a quem migrou e tem necessidade de encaminhamento profissional, acolhimento e passagem de volta.

De acordo com a prefeitura, equipes de assistentes sociais pesquisam se existem familiares ou amigos que podem acolher e dar suporte a quem quer retornar para casa. No caso do migrante não querer deixar a cidade é encaminhado para um dos serviços da rede socioassistencial.

Em 2016, 1.416 pessoas foram beneficiadas com o programa ante as 1.348, de 2015.

Mariana Zylberkan/Folhapress
Usuários de drogas saem da praça Princesa Isabel e ocupam a rua Helvétia com a Barão de Piracicaba

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