Folha de S. Paulo


Antiga cracolândia foi bairro de elite; com novo projeto, tem futuro incerto

Antigo hotel Rio Jordão, na al. Dino Bueno, em 1986; guardas-civis no mesmo endereço, em 2017
José Nascimento (1986) e Zanone Fraissat (2017)/Folhapress
Antigo hotel Rio Jordão, na al. Dino Bueno, em 1986; guardas-civis no mesmo endereço, em 2017

Palco de uma operação que prendeu traficantes e dispersou usuários de drogas, a região da antiga cracolândia de São Paulo é alvo de novo projeto de mudança. Questionada por urbanistas e pela Promotoria, porém, a reformulação tem futuro incerto.

A proposta abrange dois quarteirões delimitados pelas ruas Glete e Helvétia e pelas alamedas Cleveland e Barão de Piracicaba, no centro.

O novo desenho foi feito a pedido da prefeitura pela construtora Canopus e pela secretaria Estadual de Habitação, afirma Rodrigo Garcia, titular da pasta do governo Geraldo Alckmin (PSDB).

Segundo ele, a solicitação é anterior à operação policial realizada no último dia 21. Depois da ofensiva, a concentração de usuários de drogas migrou cerca de 400 metros, da área alvo do projeto para a praça Princesa Isabel.

Na antiga cracolândia, a gestão do prefeito João Doria (PSDB) removeu moradores e deu início a uma ação para demolir imóveis. A medida foi interrompida após uma escavadeira atingir uma casa com três pessoas, e a Justiça proibir o município de interditar imóveis sem encaminhar os moradores para programas de saúde e habitação.

Na sexta-feira (2), uma nova ação ameaçou os planos do prefeito para o local. Nela, o Ministério Público pede a proibição de remoções na área e o veto ao início de qualquer projeto urbanístico sem discussão com a população.

PARCERIA

A nova proposta para a antiga cracolândia, segundo o secretário estadual de Habitação, inclui os dois quarteirões na PPP (parceria público-privada) da Habitação, que já prevê 1.642 unidades de moradia na região da Luz.

O desenho, que ainda depende de aval da prefeitura, prevê um CEU (Centro de Educação Unificado), um posto de saúde, duas áreas de serviços e comércio e quatro de habitação. Seriam 394 apartamentos para famílias com renda de até cinco salários mínimos e 42 para a faixa de até dez salários.

Editoria de Arte/Folhapress

Parte das edificações manteria as fachadas originais, diz Garcia, pois a região tem mais de dez imóveis tombados. Segundo ele, se o estudo for aprovado, e a desapropriação feita, as obras podem começar em até seis meses e terminarem no fim de 2019.

Urbanistas veem a reformulação com reservas. Para Kazuo Nakano, da Faculdade Belas Artes, sem diálogo com comerciantes e moradores, e com nova cracolândia na vizinhança, a proposta pode ficar no papel. "Empresário nenhum quer investir numa região conflagrada."

ELITE

"Grande casa ideal para hotel ou laboratório - Junto da estrada Sorocabana", dizia o anúncio de 1967 referente ao imóvel da alameda Dino Bueno, 118, em Campos Elíseos.

O bairro, na região central de SP, abrigou do fim do século 19 ao início do 20 a elite paulistana, que dali se mudaria para Higienópolis e avenida Paulista e só depois para Jardins e Morumbi, diz o professor Nestor Goulart Reis Filho, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

Hoje, do imóvel 118, com localização que já foi privilegiada por estar ao lado da ferrovia, resta apenas a casca.

No meio da antiga cracolândia, desbaratada após operação policial no último dia 21, a fachada é uma testemunha da degradação da região.

O endereço já abrigou empresa de vigilância, hotel, cortiço e, em sua última versão, concentração de usuários de drogas. Ficava no epicentro do "fluxo", local onde os dependentes de crack ficavam.

"A nova 'cracolândia' de São Paulo se encerra entre a avenida Duque de Caxias, a alameda Glete, a rua Cleveland e a Dino Bueno", noticiou a Folha em abril de 2005, após operação policial que levou usuários para lá –inclusive diante do número 118.

Desde então, os usuários migraram algumas vezes, mas sempre na mesma região.

Em 2012, o imóvel ficou conhecido como "casarão do crack" por abrigar centenas de usuários. Naquele ano, teve seu interior e parte da fachada demolidos em uma operação policial.
Um ano depois, usuários de drogas voltaram a se concentrar em sua entrada após a desativação de um centro de reinserção profissional.

Propriedade de uma mesma família que detém outros cinco imóveis no quarteirão, o terreno está no plano de desapropriação da prefeitura.

As mudanças e a agilidade com que vêm sendo ordenadas pela prefeitura preocupam Fernando Túlio Franco, presidente da seccional paulista do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil). Uma ação de demolição parcial na região, na semana passada, tinha como um dos alvos justamente o número 118.

Para ele, intervenções em uma área com tantos bens tombados precisam ser melhor discutidas com órgãos de patrimônio –o que não ocorreu desta vez.

Apreensão similar tem o urbanista Renato Cymbalista. "Quando se constrói novamente sobre áreas com construções antigas, dificilmente se mantém a cara do bairro, porque há uma série de normas atuais que mudam as características das edificações."


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