Folha de S. Paulo


'Semana perdida' na cracolândia frustra novo programa de Doria

TV Folha

No domingo (21), o prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), andava pela cracolândia, centro da cidade, vestindo um casaco preto. Apontava pilhas de lixo e cumprimentava policiais que minutos antes haviam expulsado usuários de crack e prendido dezenas de traficantes.

Gravou um vídeo para as redes sociais. Aos repórteres foi enfático: "A cracolândia aqui acabou, não vai voltar mais. Nem a prefeitura permitirá nem o governo do Estado. A partir de hoje, isso é passado".

Nos bastidores, o clima estava mais tenso. De um lado, aliados do governador Geraldo Alckmin (PSDB), padrinho político de Doria, queixavam-se da tentativa do prefeito de ser protagonista de uma operação policial a cargo do Estado, "sem banho de sangue".

De outro, integrantes de pastas sociais da prefeitura reclamavam de um "atropelo" da polícia. Diziam esperar uma ação apenas no fim de maio ou início de junho, sem um único "Dia D" –e que, por isso, teriam que improvisar para atender os dependentes.

O plano era seguir alguns traficantes e prendê-los fora da cracolândia (em casa, por exemplo). O objetivo era evitar confronto e fuga de usuários para outras regiões, o que acabou acontecendo.

Desde o início do ano, a prefeitura e o governo Alckmin trabalhavam em sintonia no programa Redenção, criado por Doria para substituir o Braços Abertos, de Fernando Haddad (PT). A ação era bem-vista pelo Ministério Público, que acompanhava.

No dia do lançamento da ação, a gestão Doria pretendia ter prontos equipamentos ambulatoriais, vagas em hospitais e estrutura de acolhimento para os viciados.

O plano começou a sair dos trilhos no fim de abril, quando reportagens da Folha e da TV Globo passaram a mostrar a feira livre de drogas no local, com bolos de notas e grandes pedras de crack.

A pressão sobre Alckmin subiu com a morte de um socorrista por traficantes e a divulgação de foto de bandidos armados na cracolândia.

A essa altura, a Polícia Civil, que tinha agentes infiltrados, deu largada a novo plano. Já sabia quem eram os criminosos que mandavam ali.

A Secretaria da Segurança Pública, do governo Alckmin, avisou o secretário de Governo de Doria, Julio Semeghini. A polícia queria que a GCM (Guarda Civil Metropolitana) assumisse o perímetro da cracolândia, para evitar que o tráfico retornasse para lá.

As questões social e de saúde ficaram em segundo plano. Secretários dessas áreas de Doria foram avisados só um dia antes da ação, segundo nota da prefeitura.

Essa versão veio à tona depois que a operação começou a sair do controle, com secretários de Alckmin e Doria contradizendo uns aos outros.

A rede municipal não estava preparada. Egressos da cracolândia dormiram no chão de abrigos, comeram comida estragada e equipamentos ambulatoriais temporários não haviam sido montados.

CRACOLÂNDIAS

Com a dispersão dos usuários, uma nova cracolândia surgiu a menos de 400 metros da antiga –dessa vez, na praça Princesa Isabel. Tráfico e uso de crack continuaram. Outras 22 cresceram, do Minhocão à avenida Paulista.

Na terça (23), Doria foi até a cracolândia para a derrubada de prédios entre a alameda Dino Bueno e a rua Helvétia. A ação foi um desastre: um edifício começou a ser demolido com moradores dentro, três se feriram. Doria e secretários saíram às pressas de lá.

Órgãos que antes apoiavam o programa anticrack de Doria se sentiram traídos. O promotor Arthur Pinto Filho classificou o processo como uma "selvageria sem paralelo".

A secretária de Direitos Humanos, Patrícia Bezerra, afirmou que a ação foi "desastrosa" e pediu demissão.

Doria dobrou a aposta e pedir autorização à Justiça para recolher dependentes na rua para avaliação –podendo depois interná-los à força, com aval de um juiz. Enquanto secretários diziam que a ação policial facilitou a abordagem dos usuários, o pedido ao Judiciário falava o inverso: a dispersão teria atrapalhado.

Na sexta (26), agentes abordaram 156 pessoas. Três aceitaram tratamento. À noite, o juiz Emílio Migliano Neto aceitou o pedido de Doria, por 30 dias, focado na cracolândia.

A prefeitura ainda não sabia bem como tirar isso do papel. Em sua equipe, falava-se que Doria estava se metendo em uma "Guerra do Vietnã", o longo conflito em que os EUA entraram e perderam.

*

Cracolândia na última semana

Domingo (21)
A polícia de SP, da gestão Geraldo Alckmin (PSDB), realiza uma das maiores operações de combate ao tráfico de drogas na região –50 pessoas são presas e a feira ilícita a céu aberto é desmantelada. João Doria (PSDB) diz que "a cracolândia acabou", mas usuários continuam comprando drogas nas imediações. Apesar de ter sido articulada entre Estado e município, ação expôs atritos entre as duas administrações

Segunda (22)
Gestão Doria cerca a antiga cracolândia com guardas municipais, que fazem revistas para impedir que dependentes voltem a se instalar. Ministério Público anuncia inquérito para investigar falta de acolhi-mento, desvio de função da GCM e ação inadequada da PM ao dispersar usuários. A Folha presencia acolhidos dormindo no chão, sem colchão, em espaço municipal

Terça (23)
Três ficam feridos após prefeitura iniciar demolição de uma pensão ainda ocupada na área. Doria vai embora e deixa que secretários deem explicações. Comércios também são lacrados com muros antes que proprietários retirassem pertences. Centro vive dia de confusão, com dependentes espalhados, série de roubos e lojas fechadas

Quarta (24)
Três dias após ação, Doria não cumpre projeto de assistência negociado com órgãos civis, e nova cracolândia surge a 400 metros, na pça. Princesa Isabel. Prefeitura pede a tribunal carta branca para internar usuários à força, e, em outro processo, Justiça veta temporariamente demolições e remoção de moradores. Secretária de Direitos Humanos, Patrícia Bezerra, pede demissão

Editoria de Arte/Folhapress
PARA ONDE FORAM OS USUÁRIOS

Quinta (25)
GCM registra dependentes espalhados por ao menos 20 pontos da cidade, do Minhocão à Paulista.

Sexta (26)
Em processo sob segredo de Justiça, juiz decide que a prefeitura precisará de autorização judicial, bem como avaliação médica, para fazer internações compulsórias, pelos próximos 30 dias; MP e Defensoria decidem recorrer. Liminar também passa a permitir que agentes municipais retirem usuários à força para avaliação médica e, depois, de um juiz

Descaminhos da cracolândia


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