As organizações civis Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas e a Conectas Direitos Humanos denunciarão em audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), nesta quarta-feira (24), a operação coordenada pelo governo do Estado e pela Prefeitura de São Paulo na região da cracolândia, ocorrida no domingo (21).
As duas entidades levarão o caso ao órgão, que é ligado à OEA (Organização dos Estados Americanos). Após isso, o episódio será registrado em um relatório que encaminhará recomendações da CIDH ao Estado brasileiro. A comissão é um braço do sistema de promoção e proteção de garantias humanitárias nas Américas.
Originalmente, a reunião iria tratar do contingente de pessoas presas no Brasil em decorrência do envolvimento com o tráfico de drogas. Depois do episódio do último fim de semana, as organizações civis decidiram acrescentar à audiência o caso da cracolândia.
De acordo com a Plataforma e a Conectas, as gestões João Doria (PSDB) e Geraldo Alckmin (PSDB) agiram de forma desproporcional para coibir o tráfico de drogas na região, que fica no centro da capital paulista e é ponto de reunião de dependentes químicos.
Em operação policial coordenada em conjunto pelas administrações municipal e estadual, 900 agentes da polícia foram mobilizados para prender traficantes na área. O Denarc (Departamento de Narcóticos) mirava 69 deles, além de desmanchar uma feira de drogas local. Ao todo, 50 pessoas foram presas e três adolescentes, apreendidos.
Dependentes químicos que costumavam se concentrar na alameda Dino Bueno foram dispersados, comércios foram emparedados e imóveis deverão ser demolidos. Na tarde desta terça (23), a parede de uma pensão chegou a ser derrubada no início da ação da prefeitura, mas pessoas ainda estavam no local. Três delas ficaram feridas.
A Plataforma e a Conectas afirmam que a operação policial usou mais força do que seria necessário. "Isso exemplifica como é a política de drogas no Brasil. Não tratar como uma saúde pública, mas como uma questão de violência", diz à Folha o coordenador de relações institucionais da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas, Gabriel Santos Elias.
Segundo ele, a operação policial foi um desdobramento de abordagens que privilegiam encarcerar dependentes químicos, em detrimento de práticas de prevenção e de assistência.
Doria chegou a dizer, no domingo, que a cracolândia "acabou", depois que usuários de droga deixaram o local onde costumavam se concentrar. No mesmo dia, o prefeito decretou o fim do programa do antecessor Fernando Haddad (PT), De Braços Abertos, e anunciou seu programa, Redenção.
O novo programa unirá parte do De Braços Abertos, que buscava recuperar dependentes com redução dos danos causados pelo consumo e a oferta de trabalho, com o Recomeço, do governo estadual, que faz a internação compulsória de usuários para afastá-los das substâncias.
"O Estado está legitimando novas formas de encarcerar usuários pela via da internação, contrariando orientações internacionais e a própria legislação brasileira", critica Elias.
ENCARCERAMENTO
A audiência, que também tratará da superlotação de presídios e será em Buenos Aires, estava marcada desde março. De acordo com a Plataforma e a Conectas, um dos motivos para o excesso de contingente nas prisões no Brasil é a atual forma de aplicação da lei brasileira 11.343/2006, conhecida como Lei de Drogas.
De acordo com dados do Ministério da Justiça, desde quando a regra foi promulgada, em 2006, até 2014, o número de pessoas presas por tráfico de substâncias ilícitas saltou de 31 mil para 174 mil. Atualmente, 28% da população prisional responde por crimes relacionados à Lei de Drogas.
O aumento do encarceramento, segundo as organizações civis, é motivado por excesso de rigor na aplicação das penas pelo crime de tráfico, previsto na legislação. Elas afirmam que o país desconsidera as diferentes categorias do crime, como a diferença entre pequenos e grandes traficantes, e os tipos de punição determinados na regra.
Após a audiência, CIDH recomendará ao Brasil mudanças na aplicação da Lei de Drogas.
OUTRO LADO
Em nota, o Governo do Estado declarou que a denúncia à CIDH "trata-se de posição assumida por quem não tem compromisso com a dignidade humana ou com a resolução do grave problema social".
"A intervenção policial libertou usuários, permitindo que agentes da saúde e da assistência social cumpram (sic) o seu papel", complementou.
Na nota, o governo ainda disse que "a sociedade pode estar segura de que a intervenção medida é sempre adotada na perspectiva única de defender cada homem e mulher que habita nosso território. Para o Governo do Estado de São Paulo o trabalho em favor do próximo faz a diferença".
A gestão Doria declarou o mesmo sobre a denúncia à CIDH: "Trata-se de posição assumida por quem não tem compromisso com a dignidade humana ou com a resolução do grave problema social que a cracolândia representa", afirmou, em nota.
"A intervenção policial libertou usuários, permitindo que agentes da saúde e da assistência social cumpram (sic) o seu papel e possam (sic) se aproximar dos usuários de drogas e realizem uma abordagem com respeito e dignidade."
No posicionamento, a prefeitura ainda declarou que "o governo do Estado e prefeitura reservam aos usuários atendimento especializado competente e humanizado e aos traficantes, o rigor da lei".
A nota enviada pela prefeitura continha redação quase idêntica ao posicionamento enviado pelo governo paulista à reportagem. Nas poucas distinções entre as duas notas, há diferenças nos trechos onde na primeira se lê "governo do Estado" para "governo do estado e prefeitura" na segunda.
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Programas sociais na cracolândia
RECOMEÇO
Criação: Governo do Estado (jan.2013, sob Alckmin)
Objetivos: Tratar o usuário com medidas ambulatoriais, inclusive internações compulsórias
O que oferece: Acesso a tratamento, internação se preciso, encaminhamento a capacitação e recolocação profissional
Orçamento anual: R$ 80 milhões
Gasto por usuário: R$ 1.350 por mês (internação)
BRAÇOS ABERTOS
Criação: Prefeitura de SP (jan.2014, sob Haddad) - Foi extinto por Doria
Objetivos: Reinserir o dependente na sociedade e estimular a diminuição do consumo de drogas
O que oferece: Moradia em hotéis, 3 refeições por dia, apoio em tratamentos, profissionalização e emprego
Orçamento anual: R$ 12 milhões
Gasto por usuário: R$ 1.320 por mês
REDENÇÃO
Criação: Prefeitura de SP (mai.2017, sob Doria)
Objetivos: Unir os dois programas, visando tanto a reinserção do usuário como o tratamento clínico
O que oferece: Moradia distante do "fluxo", trabalho em empresas privadas e encaminhamento a tratamento
Orçamento anual: Ainda não estimado
Gasto por usuário: Ainda não estimado
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Cronologia
Operações e projetos na região que não deram certo
Set.2005
A gestão Serra-Kassab dá início ao projeto Nova Luz, que pretendia recuperar a área com investimento público e privado, mas o modelo não vingou
Fev.2008
O então prefeito Gilberto Kassab (PSD) afirma que a cracolândia não existe mais. "Não, não existe mais a cracolândia. Hoje é uma nova realidade", declarou. O consumo de drogas, no entanto, continuou explícito
Jan.2012
Polícia Militar intensifica a Operação Centro Legal e ocupa as principais ruas da Luz com cerca de 300 homens. Dependentes que se concentravam na rua Helvétia se dispersam para outros pontos da região
15.jan.2014
Assistentes sociais e funcionários da prefeitura retiram usuários e limpam a rua. Segundo a prefeitura, 300 pessoas foram cadastradas no programa Braços Abertos, da gestão Haddad (PT). O tráfico, porém, persistiu
23.jan.2014
Três policiais civis à paisana vão ao local para prender um traficante e usuários reagem com paus e pedras. A confusão aumentou com chegada de reforços e terminou com cerca de 30 detidos
29.abr.2015
Operação desarticulada da prefeitura e do governo do Estado transforma o centro em uma praça de guerra, com bombas de gás, furtos a pedestres e depredação de ônibus. Dois dias depois, fluxo retornou. Haddad chamou ação de 'sucesso'
5.ago.2016
Polícia realiza operação com 500 homens na cracolândia e ocupação do Cine Marrocos, no centro, e prende ao menos 32 pessoas