Folha de S. Paulo


Operação na cracolândia expõe 'guerra fria' entre os tucanos Alckmin e Doria

Danilo Verpa/Folhapress
SAO PAULO - 21.05.2017 - Operacao da policia civil na cracolandia - Prefeito João Dória-. (Foto: Danilo Verpa/Folhapress, PODER ) ORG XMIT: Cracolandia
João Doria anda pela região após ação da Polícia Civil; ele chegou a declarar o "fim da cracolândia"

No discurso oficial, a operação realizada na manhã deste domingo na cracolândia, no centro de São Paulo, foi um "sucesso" graças à integração total entre os governos municipal e estadual, de João Doria e Geraldo Alckmin.

Nos bastidores, porém, a intervenção na "feira da droga" teve problemas de comunicação, desarticulação de algumas ações e exposição da "guerra fria" entre as equipes dos aspirantes à corrida presidencial pelo PSDB em 2018.

A operação foi feita em meio a reclamações de alguns integrantes da gestão Doria, que falavam em "atropelo" da ação policial antes que todas as medidas protetivas dos usuários de drogas da cracolândia fossem montadas.

Eles diziam esperar uma intervenção somente no final de maio ou começo de junho, sem um único "Dia D" –e que, por isso, teriam que improvisar para atender os dependentes que buscassem algum tipo de acolhimento.

A data escolhida pela polícia coincidiu com um final de semana da Virada Cultural da prefeitura, quando a GCM (Guarda Civil Metropolitana) estava com boa parte do efetivo envolvida na segurança do evento –podendo assumir riscos ao acumular essa tarefa com a cracolândia.

Cracolândia - Operação policial - Fluxo - Onde fica - Perfil dos usuários

A gestão Doria havia dito anteriormente que pretendia ter os usuários cadastrados para poder encaminhá-los aos locais mais adequados quando fosse necessário.

O que se viu, porém, foram dependentes buscando atendimento assistencial, mas sem nenhuma ação ostensiva de acolhimento desse público.

Usuário de droga na Cracolândia

A Folha presenciou um desses dependentes, Paulo Henrique de Oliveira, 35, procurando policiais para questionar como deveria fazer para se internar. Morador do interior paulista, disse estar na cracolândia há quatro meses, sem conseguir sair de lá.

Ele também procurou funcionários da prefeitura que faziam a limpeza da área que disseram desconhecer, naquele momento, alguma possibilidade de internação.

Em meio à ação policial, a dependente Aparecida Talita Ferreira de Almeida, 24, estava sentada na calçada com um cobertor comendo restos de um mamão que encontrou no lixo. Ela disse que já não sabia mais há quanto tempo estava na cracolândia.

Integrantes da gestão Alckmin, por sua vez, dizem que a gestão Doria não pode se dizer surpreendida com nada, por estar informada havia pelo menos duas semanas.

Eles também dizem que a desarticulação envolve setores da própria prefeitura –parte apoiava uma ação mais enérgica, enquanto outra queria uma mais negociada, com intervenções sociais antes da entrada na região.

Questionado pela Folha, Doria confirmou ter sido informado da operação. "Obviamente eu sabia disso, evidentemente que tinha que manter isso sob reserva."

PROTAGONISTA

Integrantes da gestão Alckmin demonstraram descontentamento ao ver Doria capitalizar os louros de uma ação realizada prioritariamente pelo governo estadual.

Na avaliação dos alckmistas, como não houve desgaste na operação policial (como feridos ou confronto generalizado), Doria buscou ser protagonista ao visitar a região, divulgar vídeo em rede social e adotar um discurso mais ousado que Alckmin.

Nas entrevistas, Alckmin procurou ser mais prudente, dizendo que a ação policial era um "primeiro passo". Doria arrojou ao decretar a extinção do lugar. "A cracolândia aqui acabou, não vai voltar mais", disse.

Um termômetro da disputa interna pela paternidade da ação na cracolândia também foi uma nota oficial divulgada pela gestão Alckmin.

A divulgação feita durante a tarde pelo governo do Estado coloca a prefeitura, e Doria, com grau menor de importância nos resultados obtidos neste domingo.

"Governo do Estado de São Paulo faz megaoperação contra traficantes na cracolândia", anuncia a divulgação, que destaca em seguida. "Governador Geraldo Alckmin acompanhou operação durante toda a manhã."

Usuária de drogas na Cracolândia

Outro exemplo dessa disputa não declarada foi um vídeo postado pelo governador nas redes sociais, ao lado de secretários de Estado, em que fala do sucesso da operação.

Doria postou o seu vídeo sobre a operação, em que aparece sozinho, horas antes.

O governador tinha no final da tarde 30 mil visualizações em sua postagem, contra quase dois milhões do prefeito.

Descaminhos da cracolândia

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Programas sociais na cracolândia

RECOMEÇO

Criação: Governo do Estado (jan.2013, sob Alckmin)
Objetivos: Tratar o usuário com medidas ambulatoriais, inclusive internações compulsórias
O que oferece: Acesso a tratamento, internação se preciso, encaminhamento a capacitação e recolocação profissional
Orçamento anual: R$ 80 milhões
Gasto por usuário: R$ 1.350 por mês (internação)

BRAÇOS ABERTOS

Criação: Prefeitura de SP (jan.2014, sob Haddad) - Foi extinto por Doria
Objetivos: Reinserir o dependente na sociedade e estimular a diminuição do consumo de drogas
O que oferece: Moradia em hotéis, 3 refeições por dia, apoio em tratamentos, profissionalização e emprego
Orçamento anual: R$ 12 milhões
Gasto por usuário: R$ 1.320 por mês

REDENÇÃO

Criação: Prefeitura de SP (mai.2017, sob Doria)
Objetivos: Unir os dois programas, visando tanto a reinserção do usuário como o tratamento clínico
O que oferece: Moradia distante do "fluxo", trabalho em empresas privadas e encaminhamento a tratamento
Orçamento anual: Ainda não estimado
Gasto por usuário: Ainda não estimado

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Cronologia

Operações e projetos na região que não deram certo

Set.2005
A gestão Serra-Kassab dá início ao projeto Nova Luz, que pretendia recuperar a área com investimento público e privado, mas o modelo não vingou

Fev.2008
O então prefeito Gilberto Kassab (PSD) afirma que a cracolândia não existe mais. "Não, não existe mais a cracolândia. Hoje é uma nova realidade", declarou. O consumo de drogas, no entanto, continuou explícito

Jan.2012
Polícia Militar intensifica a Operação Centro Legal e ocupa as principais ruas da Luz com cerca de 300 homens. Dependentes que se concentravam na rua Helvétia se dispersam para outros pontos da região

15.jan.2014
Assistentes sociais e funcionários da prefeitura retiram usuários e limpam a rua. Segundo a prefeitura, 300 pessoas foram cadastradas no programa Braços Abertos, da gestão Haddad (PT). O tráfico, porém, persistiu

23.jan.2014
Três policiais civis à paisana vão ao local para prender um traficante e usuários reagem com paus e pedras. A confusão aumentou com chegada de reforços e terminou com cerca de 30 detidos

29.abr.2015
Operação desarticulada da prefeitura e do governo do Estado transforma o centro em uma praça de guerra, com bombas de gás, furtos a pedestres e depredação de ônibus. Dois dias depois, fluxo retornou. Haddad chamou ação de 'sucesso'

5.ago.2016
Polícia realiza operação com 500 homens na cracolândia e ocupação do Cine Marrocos, no centro, e prende ao menos 32 pessoas


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