Folha de S. Paulo


Marco industrial de SP, vila celebra centenário entre vanguarda e ruína

Zanone Fraissat/Folhapress
Edelcio Pereira Pinto, morador da vila industrial, nas ruínas da escola onde estudou
Edelcio Pereira Pinto, morador da vila industrial, nas ruínas da escola onde estudou

A sala de aula onde Edelcio Pereira Pinto, o seu Dedé, aprendeu o bê-á-bá, a matemática e as ciências já não tem paredes. Pelas janelas, saem em busca de sol os galhos das árvores que cresceram no prédio abandonado da antiga Escola de Meninos da Vila Maria Zélia, no Belenzinho, na zona leste de SP.

Inaugurada há cem anos, a vila foi concebida como parte do complexo industrial da Companhia Nacional de Tecidos de Juta para abrigar operários e suas famílias.

Composta por 178 casas, armazéns, igreja, escolas, creche, posto médico, praça e coreto num terreno à beira do rio Tietê, a Vila Maria Zélia foi um marco na história da indústria nacional, das relações de trabalho e da urbanização da capital paulista.

Mesmo com boa parte das casas já desfiguradas, o conjunto arquitetônico de fábrica e vila foi tombado como patrimônio histórico em 1992, o que ainda não lhe garantiu a proteção devida ao título.

Por isso, a antiga vila operária celebra seu centenário entre a vanguarda e a ruína.

"Muitos moradores têm dificuldades em manter as edificações tombadas ao mesmo tempo que reconhecem o valor das construções e a necessidade de sua preservação", explica Ana Luíza Frangello, da Associação Cultural Vila Maria Zélia, criada em 2006 para preservar a memória destes espaços.

ASSOMBRAÇÃO

"Quando recebi uma carta sobre o tombamento da minha casa, achei que colocariam ela abaixo", lembra seu Dedé. "Não entendi nada."

Ele aponta para as marcas da chuva que entra pelo telhado e escorre pelas paredes da sala. "Para trocar meu telhado, preciso de duas autorizações. Se me veem mexendo, me autuam", diz, com a voz embargada. "Outros mudam tudo e pagam a multa. Eu não tenho condições."

Aos 68 anos, seu Dedé mora em frente à escola tomada pelo mato e pelas árvores, na mesma casa onde nasceu. Ele é neto de um artesão que trocou o tear manual pelas máquinas da fábrica de juta.

"Volta e meia ouço um estrondo, e lamento. É mais um pedaço do prédio que foi pro chão", conta. "Pior é a Escola de Meninas. Lá não tem mais nada pra cair."

Os edifícios gêmeos de linhas retas e sobriedade ornamental, projetados pelo arquiteto francês Paul Pedraurrieux e erguidos um em frente ao outro, hoje pertencem ao INSS e atingiram tamanho estado de degradação que ganharam ares sombrios.

"Vou logo avisando aos que buscam aventuras que ali não aparece assombração", brinca ele. "Mas, se aparecesse algum fantasma, eu torceria para ser o do doutor Jorge Street, com quem eu gostaria muito de conversar."

Arquivo
Vista parcial da Vila Maria Zélia, em 1919; construção teve início em 1912
Vista parcial da Vila Maria Zélia, em 1919; construção teve início em 1912

POETA

Ele se refere ao médico e industrial que concebeu o complexo de fábrica e vila operária batizados com o nome da jovem filha que perdeu para a tuberculose.

"Jorge Street era uma figura ímpar. Num tempo em que os operários viviam em cortiços e habitações precárias, seus funcionários moravam em casas, tinham assistência médica e dentária, creche e escola", explica Palmira Petratti, professora da Unesp e autora de "A Fábrica do Sonho: a Trajetória do Industrial Jorge Street" (ed. Paz e Terra).

Era sua mulher, Zélia Frias, quem cuidava de perto da qualidade dos serviços de saúde e educação das crianças. Sua sobrinha Elvira Frias era casada com Luis Torres de Oliveira, que administrou a vila. Eles viveram ali com seus nove filhos, entre os quais Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), publisher da Folha.

Jorge Street (1863-1939) havia se formado em humanidades na Alemanha na época de ascensão do socialismo. "Não era socialista, mas um capitalista consciente", diz Petratti. Ele admitia a greve pacífica e defendia os sindicatos como necessários para mediar antagonismos entre empresários e operários.

A quem questionava seus métodos, Street dizia que era uma forma de fazer justiça social. A vila e sua estrutura lhe renderam a alcunha de poeta entre industriais paulistas. Ainda assim, foi um líder nas entidades patronais.

Por outro lado, a vila também foi alvo da desconfiança de movimentos operários, que a viam como forma inteligente de exploração e de controle do operariado, que deveria viver de acordo com normas pregadas atrás das portas das casas.

PRESÍDIO

O tempo de Street à frente da fábrica e da Vila Maria Zélia, no entanto, durou pouco.

A fábrica foi improvisada como presídio para quase 700 presos políticos no Estado Novo (1937-1946). Entre eles, estavam os intelectuais Caio Prado Júnior e Paulo Emílio Sales Gomes. Lá, foram criados grupos de estudo de sindicalismo e teoria política.

Anos depois, a fábrica foi comprada pela Goodyear e, em 1968, as casas passaram a ser vendidas para seus inquilinos pelo Banco Nacional de Habitação (BNH).

Para o urbanista Nabil Bonduki, colunista da Folha, a Vila Maria Zélia "foi precursora de uma ideia de conjunto habitacional integrado a equipamentos sociais".

"Ela antecipa a produção habitacional pública dos anos 1940 e 1950", explica o autor de "Pioneiros da Habitação Social no Brasil" (editora Sesc). Para ele, é preciso criar diretrizes para as transformações das casas e para os usos dos espaços coletivos.

Desde os anos 1960, a vila é usada como locação para filmes, novelas e videoclipes. De Mazzaropi à cantora Anitta.

Hoje, um dos armazéns da vila é sede do Grupo XIX de Teatro. Em 2014, a bailarina Maria Zélia Bacellar Monteiro, 57, bisneta de Jorge Street, criou um espetáculo de dança para as ruínas da Escola de Meninas. Para seu Dedé, que assistiu a uma das apresentações, foi uma "maravilha". "Naquela hora, até consegui esquecer de que aquilo tudo era ruína."

Editoria de Arte/Folhapress
Para urbanista, vila foi precursora de ideia de conjunto habitacional integrado a equipamentos sociais
Para urbanista, vila foi precursora de ideia de conjunto habitacional integrado a equipamentos sociais

-

CRONOLOGIA

1912 Início de construção da Vila

1915 Morre Maria Zélia, filha do casal Jorge e Zélia Street, aos 16, de tuberculose

1917 Inauguração da Vila; assassinato do operário José Martinez; greve geral dos operários de SP

1924 Vila é vendida para os Scarpa

1929 Vila é vendida aos Guinle; quebra da bolsa de NY

1931 Fábrica é fechada por dívidas fiscais

1936 Fábrica e Vila passam para o Iapi (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários)

1936/7 Fábrica é usada como presídio político do Estado Novo

1939 Fábrica é comprada pela Goodyear

1969 Casas da Vila são vendidas a seus inquilinos pelo Banco Nacional da Habitação (BNH)

1992 Vila Maria Zélia é tombada como patrimônio histórico e cultural de São Paulo

2017 Centenário da fundação da Vila Maria Zélia


Endereço da página:

Links no texto: