Folha de S. Paulo


'Feira da droga' vira impasse para programa de Doria na cracolândia

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A poucos metros de onde um senhor toma café próximo à avenida Rio Branco, no centro de São Paulo, cessa a normalidade. Meio-dia, usuários de drogas estão reunidos na cracolândia sob um sol escaldante, cachimbos nos lábios ou nas mãos, à procura da droga em uma feira a céu aberto.

Por ali não passam carros. Usuários ocupam a rua Helvétia, na região da Luz, vendendo objetos sobre panos estendidos no chão, como meias, brinquedos, uma bíblia por R$ 1, uma edição de "O Primo Basílio" por R$ 3.

Com o dinheiro, seguem para a alameda Dino Bueno, na esquina. Ali, o tráfico é livre e organizado, com tendas dispostas uma ao lado da outra e um corredor por onde o consumidor pode passar e manusear os produtos, como a Folha fez nesta terça (25).

Joel Silva - 05.de.16/Folhapress
Fluxo' da cracolândia, na região da Luz; sob tendas, traficantes montam 'feira' de droga
'Fluxo' da cracolândia, na região da Luz; sob tendas, traficantes montam 'feira' de droga

Traficantes estão sentados em cadeiras de plástico, atrás de mesas onde são exibidas as drogas que vendem: há grandes pedras de crack, quebradas em versões menores para a venda (R$ 10); pequenos sacos plásticos com cocaína (R$ 20), maconha. Alguns comercializam bolas de haxixe enroladas em papel filme e lança-perfume em frascos grandes e menores, ao lado de uma balança e um prato com algumas notas de dinheiro e balas de revólver.

Policiais assistem sem intervir, enquanto traficantes tomam conta de caixas lotadas de dinheiro, como mostra vídeo obtido pela Folha após ter sido apresentado em recente reunião entre integrantes da prefeitura, do governo do Estado e do Ministério Público.

Essa feira de drogas é um dos impasses de João Doria (PSDB) para o lançamento de um novo programa para a cracolândia no qual pretende trabalhar em conjunto com o governo de São Paulo. O tucano se refere à feira como "vergonhosa" e promete eliminá-la. Só não sabe ainda qual é sua melhor opção.

Três círculos do crack

PLANO

A ideia é, em um perímetro externo, fiscalizar com maior intensidade comércios, como bares e hotéis, e ocupações irregulares. Um ex-usuário de crack que morou na região por dez anos diz que os bolos de dinheiro muitas vezes são guardados pelos traficantes dentro dos bares do entorno. Alguns, diz, vendem drogas também dentro dos hotéis.

À Folha um funcionário de um hotel disse que, por R$ 10, usuários fumam crack no quarto durante uma hora.

Em agosto do ano passado, um hotel na cracolândia foi apontado pelo Denarc (departamento de narcóticos) como um quartel-general do tráfico, sob controle da facção criminosa PCC. Dez dias antes, uma fiscalização da prefeitura no hotel apontara "salubridade satisfatória" no local.

Essa parte do plano de Doria, porém, esbarraria na competência da prefeitura, que só pode fechar comércios irregulares, sem poder de investigação policial, por exemplo, fazendo da ação inócua.

Outro foco serão os roubos que acontecem no entorno. Usuários que entram na cracolândia só para comprar a droga poderão ser monitorados e abordados fora dali –medida que é criticada por especialistas, por focar no usuário, e não no traficante.

Movimentos sociais se preocupam, por exemplo, com operações policiais como a Sufoco, de 2012, baseada em repressão a usuários –o que acabou com a dispersão deles para outros bairros.

"Abordar dependentes químicos é enxugar gelo. Se o tráfico preocupa, o governo deve ir atrás do grande traficante, não de quem compra pedra", diz Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Em reuniões com o Ministério Público, a prefeitura apresentou nova versão do projeto da cracolândia, eliminando a presença fixa da Polícia Militar na área como forma de solucionar a situação.

A segunda parte do plano municipal envolve mais a inteligência da Polícia Civil, do governo do Estado, com um trabalho de investigação aos traficantes, e operações ocasionais na área, como a que aconteceu no ano passado.

É a parte mais delicada do plano. Ações policiais causam confusão na região, e não estancam o tráfico. Para Bueno, significa que "vão prender hoje e amanhã vai ter outro no lugar". "Quem vende droga ali não é o grande traficante. O que não falta é traficante para ficar lá", observa.

O último raio de ação da prefeitura é no próprio "fluxo", onde circulam os usuários e traficantes. A Guarda Civil seguirá sem intervir. Segundo a proposta de Doria, usuários poderão ter emprego, como na gestão Fernando Haddad (PT), mas condicionado ao tratamento, preceito do programa estadual de Geraldo Alckmin (PSDB).

Esperar até que todos os cerca de 500 usuários entrem e se adaptem ao programa, contudo, pode atrasar muito o plano municipal de acabar com a cracolândia.

Os planos da gestão Doria, embora enfrentem impasses, têm uma vantagem: a sintonia com o governo do Estado agora com o PSDB nas duas esferas. Na gestão Haddad, operações policiais foram levadas a cabo sem que a prefeitura fosse avisada antes.

Procurada, a Secretaria da Segurança Pública afirmou em nota que "as polícias Civil e Militar desenvolvem ações na região da Luz para sufocar o tráfico de drogas e apoiar as ações de saúde e assistência social aos usuários de drogas". A prefeitura não quis se manifestar.


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