Folha de S. Paulo


À espera de Doria, moradores da 14 Bis fazem 'condomínio' sob viaduto

"Não é mais só 14 Bis. É comunidade 14 Bis", diz Anderson Porto, 25, orgulhoso. É que os moradores de rua desse espaço no centro de São Paulo nem sempre foram uma "comunidade", nem se denominavam assim.

Depois de fazer da praça 14 Bis o símbolo de seu programa de zeladoria urbana Cidade Linda, inaugurado ali no dia 2 de janeiro, o prefeito João Doria (PSDB) afirmou que, em até 90 dias, os moradores de rua da região seriam transferidos a abrigos municipais. O prazo se esgota nesta sexta (7). Doria também disse que a situação daquelas pessoas era "transitória".

Os 29 barracos e toda uma vida instalados sob o viaduto Doutor Plínio de Queiroz três meses depois dão sinais do contrário –embora os 46 moradores do espaço ainda estejam à espera de moradia.

Quando Doria se vestiu como gari pela primeira vez, eram 56 moradores de rua espalhados pela praça: a maioria na calçada e alguns poucos sob o viaduto, fechado para os moradores de rua. Naquele dia, no entanto, eles foram orientados a deixar a calçada para dar a vez à limpeza e autorizados a ocupar o espaço debaixo da ponte.

Assim começou a migração: a veterana da 14 Bis ("são 13 anos aqui") Sara Vaz, 49, levou consigo uma barraca e quatro cachorros; Jeniffer Brasil, 29, hesitou em deixar a calçada, mas depois se apressou para não pegar um lugar ruim sob o elevado; Willian Silva, 25, colocou debaixo do braço o cartaz "ajuda com a cachaça" e decidiu ir embora para outra região.

As calçadas, agora sempre com a presença de um carro da GCM (Guarda Civil Metropolitana), ficaram limpas. E quem passa de carro pela rotatória da av. Nove de Julho não imagina o que fica por trás da tela verde, instalada pela prefeitura por cima de um alambrado do viaduto, escondendo os moradores de rua.

Em três meses, os moradores só viram minguar o interesse da imprensa, as doações de roupas e alimentos e a preocupação do poder público, lamenta Anderson Porto, espécie de líder da comunidade.

CONDOMÍNIO

Sozinhos, no entanto, consolidaram no espaço de três pequenas quadras, o "condomínio Marabraz", brinca Allan Kardec Barboza Lima, 40, o Índio, que ostenta cabelos lisos como um. Os barracos são feitos com portas de armários abandonados, que os moradores martelaram para dar forma às suas paredes.

Índio desenrola um barbante que prende a porta de seu barraco à lateral, e a abertura revela um quarto com cama de solteiro. Também há um espelho, prateleiras, um sofá, TV, um revisteiro repleto de revistas "Veja", um filtro de água, uma pia, panelas e prateleiras com plantas.

No percurso pelo labirinto que se forma entre os 29 barracos, surgem tapetes e sofás nas áreas comuns. Há uma cozinha compartilhada, com fogão de seis bocas, pia e uma geladeira quase vazia –a energia elétrica, um "gato" puxado das luzes que iluminam o viaduto, só chega à noite.

É quando se vê TV na comunidade 14 Bis –há 14 delas, algumas inclusive já com conversor digital. Toma-se banho na tenda Nove de Julho, como os moradores de rua se referem ao equipamento municipal a poucos metros dali. E, sob o viaduto, há quatro banheiros químicos, limpos de três em três dias pela prefeitura, segundo os moradores.

Para entrar no "condomínio", há uma entrada na rua, onde um portão largo dá passagem para as carroças de recicladores, e uma na calçada, que dá primeiro para uma quadra desocupada. Ali, moradores da região jogam peladas –e Fernando Silva, 22, orgulha-se de ser o único de rua a se juntar à molecada.

Na noite de quinta (30), após uma partida, foi socorrer a mulher, Nayá Ferreira, 25, após um curto-circuito no fogão em que ela fazia arroz.

"Não quero me esconder nem morrer aqui", dizia ela. "Aqui é só passagem. Quero moradia, porque sem isso não sou nada. Não tenho pai nem mãe, sempre morei na rua. Emprego é difícil porque sou travesti. Com moradia, teria estrutura para me erguer."

Para Silva, "se for para oferecer vaga em albergue, nem precisava dele [do Doria]". "Tem um monte de prédio abandonado na cidade, por que não nos coloca em um?"

Moradores de rua –são quase 16 mil em São Paulo, segundo o último censo, de 2015– rejeitam albergues porque em muitos não são permitidos famílias, casais, carroças e animais de estimação. Além disso, os moradores de rua reclamam de brigas e roubos nos locais e de albergues que os obrigam a sair muito cedo, por volta das 6h.

Na região da prefeitura regional da Sé, não há albergues para todos. São cerca de 3.700 vagas, segundo a prefeitura, para 6.302 moradores de rua (dado do censo de 2015).

A solução, diz o secretário-adjunto da pasta de Assistência e Desenvolvimento Social, Filipe Sabará, é empregar as pessoas que, com a renda, passariam a pagar por moradia –e foi essa a proposta da prefeitura aos moradores da 14 Bis. "Oferecemos vagas para todos eles em centros de acolhida [albergues], que é o que temos para oferecer. E oferecemos trabalho. Das cinco pessoas que realmente se interessaram, só uma quis trabalhar", diz. "Estão querendo morar lá por enquanto."

Para o empresário Maicon Ferreira, 32, representante de moradores dos prédios da Nove de Julho que reclamaram sobre os moradores de rua à prefeitura, "ali não é lugar para ninguém ficar". "Mas a gente sabe que não é fácil do dia para noite tirar as pessoas e realocá-las. Por isso estamos aguentando as pontas."

Dono de um fogão próprio ("troquei a barraca por um"), botijão próprio ("R$ 150, comprei com o meu dinheiro") e TV própria ("'herdei' por R$ 50"), Marcos Madureira, 45, só deseja ter a casa própria. Na rua há "anos", o ex-pedreiro e atual cigarreiro (cinco soltos por R$ 1, um maço por R$ 3) começou agora um curso de pintor. "Quando me derem onde morar, vou conseguir me manter", sorri.


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