Folha de S. Paulo


VALDIR DA SILVA, 41

Sou feliz sem enxergar, diz homem que virou fotógrafo após ficar cego

RESUMO Após um acidente de trabalho em uma fábrica de sapatos que o fez perder a visão gradativamente até ficar cego, Valdir da Silva, 41, ficou desesperado. Mas depois aprendeu a fotografar usando sentidos como audição e tato. "Hoje, se alguém perguntasse se eu queria enxergar de novo, eu responderia que não. Sou feliz do jeito que sou", afirma o gaúcho, que dá palestras motivacionais e agora planeja filmar um documentário.

*

Nasci em Taquaruçu do Sul, no norte do Rio Grande do Sul, e deixei o interior em busca de trabalho. Aos 19 anos, consegui um emprego em uma fábrica de sapatos na região metropolitana de Porto Alegre. Trabalhei por cinco anos como auxiliar de montagem: lixava a palmilha do calçado, passava cola, colocava os acessórios.

Certo dia, a ponta de uma tachinha saltou no meu olho direito. Por causa da dor do ferimento, virei para o lado e, sem querer, bati em um galão de solvente que derramou nos meus dois olhos.

O oftalmologista da clínica da empresa limpou os resíduos e me liberou para continuar trabalhando. Só que começaram a aparecer problemas, como infecções. Então, consultei com outro médico e ele diagnosticou que em seis meses eu acabaria perdendo a visão. Eu tinha 24 anos. Descobrir que ficaria cego me deu um desespero.

'VIDA ACABOU'

Fui para casa, onde morava com minha irmã, e pensei: "Vou dar um fim na minha vida. A minha vida acabou". Em seis meses perdi a "janela da alma", como a gente fala sobre os olhos foi difícil.

Comprei uma corda e, no momento que fui colocar no meu pescoço, passou um filme na minha cabeça. Percebi o quanto estava sendo egoísta, pensando apenas na minha dor. Não estava pensando na dor da minha família, dos amigos. Aquilo me fez voltar à realidade. Acabei percebendo que a vida tinha outras oportunidades.

RETOMADA

Hoje, se alguém perguntasse se eu queria enxergar de novo, eu responderia que não. Sou feliz do jeito que sou. Sou casado e tenho uma filha de cinco anos, a Vitória. Descobri a felicidade com a minha deficiência. Busquei a reabilitação e aprendi braille em oito meses, aprendi a me locomover e aprendi a desenhar.

Há uns quatro anos, a professora da Associação dos Deficientes Visuais de Canoas (Adevic) me lançou um desafio: a fotografia. "Um cego fotografando?", perguntei. "Tu tem (sic) os outros sentidos", ela incentivou. Comprei uma máquina simples e ela foi me dando dicas.

O SOM E O TATO

Sou apaixonado por fotografar aquilo que não posso ver e já fiz diversas exposições. Se escuto determinado barulho, sei que ali tem uma árvore. Se escuto um passarinho cantando, se ouço uma pessoa falando, mais ou menos defino a distância e a altura. Para fotografar o mar, também me guio pelo som.

Quando as ondas se formam, elas têm um barulho; quando quebram, têm outro som. Existe um espaço de tempo que tu tem (sic) que clicar, isso que é legal.

A busca por esse espaço de tempo, por aquele pôr do sol que tu vai (sic) sentindo o calor diminuindo e daí vai batendo a foto. Uso vários sentidos, como o tato e a audição. Só não tenho a visão, que é o sentido mais usado na fotografia. Mas aí é que está o barato: as pessoas enxergam o mundo muito visual e esquecem da essência.

Também faço palestras motivacionais. Meu sonho é ter um equipamento profissional, porque quero filmar um documentário sobre pessoas com deficiência e conscientizar sobre a acessibilidade. Não basta acesso arquitetônico, é preciso acesso humano.


Endereço da página:

Links no texto: