Folha de S. Paulo


O Carnaval resiste e, neste ano, a folia venceu a patrulha

Só há uma coisa tão bonita, poderosa e simbólica no Carnaval quanto a ala das passistas das escolas de samba, a bateria.

E o Carnaval poderia ser feito apenas desses dois elementos que tanto se completam e que fazem o samba ganhar vida e pulsar de forma tão contagiante e sedutora.

Com 11 ou 12 anos eu passava horas em frente ao espelho, tentando domar as pernas desengonçadas e dar algum molejo ao quadril. Colocava bobes no cabelo mirrado, entupia de laquê, queria ser uma daquelas deusas seminuas. Queria o corpo escultural, a fortaleza das ancas, o gingado enlouquecedor e o sorriso contagiante. Depois de muito tempo, entendi que ou (muito mal) sambo ou sorrio. Resignei-me a aplaudir.

Quando vestiram a Globeleza, pensei ser o fim do reinado absoluto das rainhas da festa. As passistas sucumbiriam à patrulha, às regras (dos outros), deixariam de ser donas de seus corpos, de suas ancas, de sua nudez. Tão logo proibirão o rebolado. Não pode.

Mas elas estavam lá, na avenida, vibrantes, pulsando em carne, exuberância e sorrisos, fazendo o coração da bateria ecoar ainda mais forte, dando fôlego à festa, sambando na cara da sociedade.

Aplaudi sem culpa. E nos dias que se seguiram, pulei Carnaval com cocar de índio, cantei "olha a cabeleira do Zezé", e acordei com tanta purpurina em meus lençóis que, se tocasse uma marchinha, sairia um bloco debaixo da cama. O Carnaval resiste.

Este ano, a folia venceu a patrulha. Mas, do jeito que a coisa anda, um dia passistas, marchinhas, purpurina e o próprio Carnaval estarão apenas em nossa lembrança. Espero já ter morrido.


Endereço da página:

Links no texto: