Folha de S. Paulo


De rosto azul, bloco alternativo de BH saúda as águas debaixo de toró

A saudação às águas do Pena de Pavão de Krishna, bloco de Belo Horizonte que é mais um ritual, teve incontestável eficácia: um toró desabou durante o cortejo, que foi feito no distrito Morro Vermelho, na cidade de Caeté, a 60 km da capital.

Numa região de montanhas, casas simples e ruas de pedra, os moradores observavam com cara de interrogação as pessoas que chegavam pintadas de azul na manhã deste domingo (26). Um dos membros parou para explicar: "É um bloco azul, parece que está na Índia, é super bonito, mas não é um bloco Hare Krishna, é aberto, de todas as nações".

Penas, turbantes, colares, saias e brilho. Tem jovens alternativos, mas também tem famílias, crianças e idosos. Tem bateria, mas também tem incenso. Pouca cerveja e catuaba, mais água e sanduíche vegano. É de deuses hindus, mas também de orixás e todas as religiões. Tem "fora, Temer" e Iemanjá. Tudo isso ficou ensopado e enlamaçado assim que o bloco saiu da Capela do Rosário rumo à igreja Matriz às 11h30, com mais de duas horas de atraso.

A chuva começou depois da entonação do OM de mãos dadas e da oração de São Francisco, "para se harmonizar e entrar na mesma sintonia". Metade das cerca de 800 pessoas presentes na concentração seguiu o bloco debaixo do pé d'água dançando com a bateria –o carro de som foi desligado.

O restante se escondeu em guarda-chuvas, carros e um restaurante próximo. A reportagem da Folha se alojou debaixo de uma lona na caçamba da primeira caminhonete que passou na estrada de terra. No caminho, os foliões ajudaram a levantar um carro caído em uma vala. Debaixo do portal de uma casa, um padre da região filmava tudo: "É muito bonito, né?".

Bloco Pena de Pavão de Krishna

TUDO A VER

Para o participante Vinícios Madeira, 28, o bloco poderia ter sido "um pouquinho mais seco", mas a chuva "combinou". "O que estragaria acabou fazendo parte do tema da água", disse.

Rafael Gonçalves, 31, um dos fundadores do bloco, explica que a região foi escolhida por abrigar o Parque Nacional da Serra do Gandarela, que se estende sobre Caeté, Itabirito, Nova Lima, Rio Acima e Raposos, onde ele acaba de assumir como vereador pelo PC do B.

É no parque que estão as nascentes do Rio das Velhas, que abastece Belo Horizonte. O tema de saudar as águas também ganhou força depois do desastre ambiental de Mariana.

"Uma parte do parque não entrou na zona de proteção, deixando livre para a mineração", diz Glauco Gonçalves, 34, primo de Rafael e coordenador do subcomitê Águas do Gandarela. "A capital depende dessa montanha, se não trouxer as pessoas para ver, fica mais difícil defender."

Juliana de Souza, 36, levou as filhas de quatro anos e um ano pela causa e pela estética do bloco, que "acaba fazendo política nessas ações".

Os moradores acharam tudo "lindo e interessante". "São muito animados na luta pela água e pela natureza. Achei maravilhoso", diz Neuza Pinheiro, 38.

ANTROPOFAGIA

O "PPK" surgiu em 2013 e não é a primeira vez que sai de BH: ano passado, desfilou em Sabará. Cerca de dez ônibus organizados pelo bloco transportaram foliões da capital para Caeté neste domingo para ouvir músicas espirituais, além de Gil e Caetano.

Outro fundador do bloco, Rafael Fares, 35, diz que a ideia é homenagear o ritmo afoxé e o nome veio da música "Trilhos Urbanos", de Caetano Veloso. "O cortejo é muito eclético, muito sagrado. É uma acupuntura, uma massoterapia na terra, então a ideia é ir cada vez para um lugar estratégico por alguma questão."

Questionado sobre o uso de turbantes e a questão da apropriação cultural, ele não elabora: "Eu entendo que é um bloco antropofágico, estamos bebendo tudo que é referência".

"Ninguém veio para pegação ou para ficar bêbado. É uma experiência diferente, um momento de reflexão", diz o advogado Caio Noronha, 26, um dos poucos com latinha na mão.


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