Folha de S. Paulo


Saiba a história de marchinhas antes de Cabeleira do Zezé virar polêmica

Ilustração Fernando Gonsales

Zezé, o da cabeleira, era um garçom que fazia sucesso com a mulherada e "nada tinha de gay", segundo o compositor dos versos que o imortalizaram. O mesmo João Roberto Kelly escreveu sobre aquela que "de dia é Maria e de noite é João" ("Maria Sapatão") e a primeira miss negra do Estado da Guanabara, atual Rio ("Mulata Iê Iê Iê").

Unânimes em Carnavais passados, essas três marchinhas entraram na linha de fogo em 2017, por letras hoje questionadas por suas tintas homofóbica e racista. Cantar ou não cantar, eis a questão para blocos de rua Brasil afora. Alguns escolheram deixar de tocar essas canções que lhe pareceram ferir o politicamente correto.

Kelly, 78, diz se horrorizar com o veto: "Censura rima com ditadura". "Engraçado que esse pessoal que se acha moderninho de progressista não tem nada. É retrógrado. Sou homem de tendência de esquerda e não posso admitir jovem fazendo censura", diz ele, autor campeão em execuções de músicas e recolhimento de direitos autorais no Carnaval desde 2008.

A mulata bossa nova, Vera Lúcia Couto, 72, concorda com a visão: "antigamente, ser mulata era elogioso". Para a historiadora Rosa Maria Araújo, coautora do musical "Sassaricando", marchinhas não devem ser julgadas sob a lente do presente.

Quando Lamartine Barbo lançou a marchinha "O Teu Cabelo Não Nega" em 1932, para celebrar a cor morena que "não pega", ele agia como "um homem de seu tempo" –assim como muitos que hoje excluem de seu léxico o termo mulata (que vem de mula) o usavam sem desembaraço não faz muito tempo atrás, na época em que essa origem não era problematizada.

"Não queremos proibir nada", diz a percussionista Juliana Storino, da Orquestra Voadora e integrante do coletivo Todas por Todas. "Mas será que é preciso ficar reproduzindo conteúdo racista e machista? Tem tantos milhões de outras marchinhas que empolgam. Falta empatia."

É preciso "ter as provas do preconceito" e não escondê-lo, diz o músico Carlos Didier, 63, biógrafo do compositor Antonio Nássara (1909-1996). Filho de sírios, Nássara invocou, em "Alalaô", Alá contra o sol do deserto –banalizando o Deus dos muçulmanos.

"Se proibirmos as músicas, vamos perder a chance de ouvi-las, refletir e dizer: 'é preconceito'. Só com lucidez e conhecimento, lidaremos com esse passado", afirma Didier.

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CABELEIRA DO ZEZÉ (1963) - João Roberto Kelly

Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é? será que ele é?

Zé Antônio era um garçom do Bar São Jorge, do Leme, no Rio. "E de gay não tinha nada, mexia com todas as meninas", diz o compositor João Roberto Kelly, 78, que era produtor musical da TV Excelsior.

Frequentador do bar, intrigou-se com o rapaz de cabelos compridos à moda Beatles. Batucou na mesa do bar a estrofe-título. Depois, com Robert Faissol, acrescentou a parte que questiona se Zezé é bossa nova ("uma novidade interessante") ou Maomé ("por causa do cabelão").

Diz que "de maneira nenhuma" insinuava que o Don Juan do São Jorge era gay.Na parte "parece que é transviado", a referência era à rebeldia de James Dean em "Juventude Transviada". "Quando cantam que ele é bicha, é um caco, coisa que o povo coloca."

Cabeleira do Zezé

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MARIA SAPATÃO (1981) - João Roberto Kelly

Maria Sapatão, sapatão, sapatão. De dia é Maria e de noite é João?

Então presidente da Riotur (empresa de turismo do município do Rio), João Roberto Kelly compôs a marchinha como uma encomenda para o amigo Chacrinha (1917-1988).

"Vamos fazer algo engraçado porque tem um bocado de sapatão!", teria lhe dito o apresentador de televisão. Ao contrário de "Cabeleira do Zezé", no entanto, essa e "Menino Gay" ("um dia ele é gatinho/ no outro ele é gatão/ pior que tem um bigodinho/ de machão, machão, machão") eram brincadeiras abertas com gays.

"Mas nunca ofendeu ninguém", afirma Kelly. A segunda parte, ressalta o compositor, "era inclusive uma elegia" às lésbicas: "O sapatão está na moda/ O mundo aplaudiu/ É um barato, é um sucesso/ Dentro e fora do Brasil".

Maria Sapatão

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MULATA IÊ IÊ IÊ (1965) - João Roberto Kelly

Mulata bossa nova
Caiu no hully gully
E só dá ela
Ê ê ê ê ê ê ê ê
Na passarela

Outra de Kelly, que viu Vera Lúcia Couto, Miss Guanabara (ex-Rio) em 1964, a 1ª campeã negra, desfilar no Maracanazinho lotado. Decidiu fazer "uma ode àquela mulher bonita e moderna", de quem é amigo até hoje.

Funcionária da Riotur, Vera, 72, diz que a homenagem "só traz alegrias". "Antigamente, ser chamada de mulata era um negócio elogioso. Eu frequentava o Renascença Clube, que todo mundo dizia que era o local com as mulatas mais bonitas." Diz não ligar para a etimologia da palavra (vem de "mula").

"Na escola, aprendi como mistura de raças." Outro termo popular na época é que doía. "Gritaram na passarela: 'Sai daí, crioula. Seu lugar é na cozinha!'. Esse sim era ofensivo."

MULATA IÊ IÊ IÊ

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O TEU CABELO NÃO NEGA (1932) - Lamartine Babo

O teu cabelo não nega, mulata Porque és
mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, eu quero
o teu amor

E se a cor pegasse? Das mais polêmicas, essa marchinha foi roubada por Lamartine Babo (1904-1963), segundo o pesquisador Carlos Didier. A parte problemática da música, todos os versos destacados acima (que, para Didier, indicam algo como "você agarra a garota, fica com ela, mas permanece branco, então tudo bem"), são de dois irmãos pernambucanos, João e Raul Valença.

Ele destaca: "Se expurgarmos essa música, perderemos uma das mais maravilhosas introduções, ainda reproduzidas por bandas de Carnaval". Há dúvidas se o "lararará" instrumental é obra de Lamartine ou Pixinguinha.

O TEU CABELO NÃO NEGA

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ALALAÔ (1941) - Antonio Nássara

Alalaô,
ô ô ô ô ô ô
Mas que calor
ô ô ô ô ô ô

De pé, na esquina da avenida Almirante Barroso com a rio Branco em um dia de fato muito quente, Antonio Nássara (1909-1996) e Haroldo Lobo (1910-1965) cantarolaram de forma "descompromissada e boêmia", segundo Carlos Didier, biógrafo de Nássara, os versos que hoje não desgrudam da cabeça de quem pula e sua no Carnaval: "alalaô, mas que calor!"

Filho de sírios que vieram ao Brasil –seu pai foi caixeiro viajante em Minas–, Nássara colocou Alá no jogo para "resolver a questão" do sol quente na cara, diz Didier. "Nunca houve nenhum problema. Alá chega como o salvador."

Nássara, lembra seu biógrafo, chegou a dizer que a música tinha um pouco de "surrealismo".

ALALAÔ


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