Folha de S. Paulo


Entenda 'te bandê', 'te curupaco', 'maimbê' e outros mistérios do axé

Fernando Vivas/Folhapress
SALVADOR, BA, 05.02.2016: CARNAVAL 2016 - Saída do bloco afro Olodum no Circuito Batatinha (Pelourinho), no final da tarde desta sexta-feira (05) (Foto: Fernando Vivas/Folhapress) *** PARCEIRO FOLHAPRESS - FOTO COM CUSTO EXTRA E CRÉDITOS OBRIGATÓRIOS ***
Bloco de carnaval nas ruas do Pelourinho, bairro no Centro Histórico de Salvador

Carnaval, cerveja na mão, trio elétrico à frente, foliões quase sem voz. Do trio, começam a cantar: "Não, não me abandone, não me desespere". Impossível não pular e cantar junto, verso por verso, até aquele "Te curupaco kioiô / Eu sou Muzenza / La la auê".

Mas... Espera. O que quer dizer "te curupaco kioiô"?

No vídeo de "Swing da Cor" (1991), na voz inconfundível de Daniela Mercury, um fã arrisca: "é um jogo de palavras". Outra comenta: "deve ser alguma frase na língua iorubá".

Passaram longe. Mas estão perdoados: nem Daniela conhece a história que deu origem ao verso, segundo o compositor da música, Luciano Gomes.

A influência africana nos clássicos de axé aparecem, de fato, em canções como a bela "Madagascar Olodum" (1987), de Rey Zulu, "Dandalunda" (2002), hit na voz de Margareth Menezes, composta por Carlinhos Brown, e a grudenta "Maimbê Dandá" (2004), de Brown e Mateus Aleluia.

No Carnaval, foliões prestam homenagem ao continente africano sem se dar conta disso. Difícil tirar da cabeça versos como "Coquê, Dandalunda, Maimbanda, Coquê", "Maimbê, Maimbê, Dandá, Maimbê, Maimbê, Dandá" e "eu te bandê, preta", de "Beija-Flor" (Timbalada, 1993).

Para Aleluia, 73, não tem problema desconhecer o significado dos versos porque "a música não tem fronteiras". "Basta emocionar, e cada um leva para um caminho", diz.

Mas se quiser cantar no Carnaval com sabedoria ou se faltar assunto para se exibir na mesa de bar, leia abaixo o significado das letras de axé que você sempre cantou, mas nunca entendeu.

*

"Beija-Flor", Timbalada
Compositores: Xexéu e Zé Raimundo

Beija-Flor

Eu fui embora meu amor chorou
Eu fui embora meu amor chorou
....
Estou sentindo
A falta de você
Sonhando com seu beijo
Espero amanhecer
Tu levas as palavras
Soltas pelo ar
Yo quero te namorar amor (3x)

Eu te bandê
Eu te bandê

Significado

Pode parecer iorubá ou então a flexão de um suposto verbo, "bander", mas o compositor, Xexéu, diz que não. "Inventei. É coisa da minha mente", afirma. "Queria algo que lembrasse a sonoridade de línguas africanas."

*

"Swing da Cor", Daniela Mercury
Compositor: Luciano Gomes

Swing da Cor

Não, não me abandone, não me desespere
Porque eu não posso ficar, ficar sem você
....
Te curupaco kioiô
Eu sou Muzenza
La la auê

Significado

Swing da Cor - Explicação

O compositor Luciano Gomes, 50, ri quando ouve a pergunta. Os versos entoados por Daniela Mercury, hit absoluto em 1991, têm origem inusitada. "Meu vizinho tinha um papagaio", relata (nenhuma história que comece com "meu vizinho tinha um papagaio" pode ser normal), "e enquanto eu estava sentado procurando um refrão forte para a música, prestei atenção no canto dele: 'ticurupacokioiô'", imita. Deu nisso. "Muzenza" designa tanto um bloco afro de Salvador quanto o "novato" no candomblé banto. "La la auê" é para lembrar "festa, folia, farra", diz o compositor.

*

"Dandalunda", Margareth Menezes
Compositor: Carlinhos Brown

Dandalunda

Bem pertinho da entrada do gueto
Um terreiro de Angola e Ketu
Mãe maiamba que comanda o centro
Dona Oxúm dançando Oxóssi no tempo
Lá em cima no tamarineiro
Marinha da pipoca ajoelha
Em janeiro, no dia primeiro
Desce o dono do terreiro

Coquê Dandalunda, maimbanda, coquê

Significado

"Carlinhos Brown cantou isso pra mim e eu me arrepiei", disse Margareth Menezes em 2011. A música narra uma cena do bairro do Candeal, em Salvador, onde Brown cresceu. "Mãe maiamba" é a mãe de santo, filha de Oxúm, que comanda um terreiro que fica ali. "Coquê" é saudação da Dandalunda, inquice dos rios e da fertilidade.

*

"Madagascar Olodum", Banda Reflexu's
Compositor: Rey Zulu

Madagascar Olodum

Criaram-se vários reinados
E o porto de Merinas ficou consagrado
Rambosalama o vetor saudável
Ivato cidade sagrada

A rainha Ranavalona destaca-se
na vida e na mocidade
Majestosa negra
Soberana da sociedade

Alienado pelos seus poderes Rei Radama
Foi considerado um verdadeiro Meiji
Que levava seu reino a bailar

Bantos, indonésios, árabes
Integram-se a cultura Malgaxe
Raça varonil alastrando-se pelo Brasil

Sankara Vatolay faz deslumbrar toda a nação
Merinas, povos, tradição
E os mazimbas foram vencidos pela invenção

Iêe sakalavas oná ê
Iáá sakalavas oná á

Significado

"Madagascar Olodum" tenta contar a história desse país insular com algumas licenças poéticas. Rambosalama -rei de Madagascar no século 18- foi um "vetor saudável" por um motivo surpreendente: porque "vetava as coisas de forma muito equilibrada", diz o compositor. Essa música que fala de Merinas (uma etnia), de uma das rainhas Ranavalona ("muito bonita", diz Rey), do rei Radama ("o top da corte"), narra como a "Bahia faz parte da África", diz ele. "Sankara Vatolay", segundo Rey Zulu, designam pontos turísticos de Madagascar.

"Sakalava" é nome de um rio de Madagascar e também de uma das mais de 20 etnias do país. Mas Rey quis conjurar algo "forte, divisor de águas, correnteza" com esse verso que precede a descrição do país como uma "ilha do amor" e a homenagem ao Pelourinho, fundindo Bahia e África.

*

"Maimbê Dandá", Daniela Mercury
Compositores: Carlinhos Brown e Mateus Aleluia

Maimbê Dandá

Meu look laquê
Mandei cachear
Me alise pra ver
Meu forte é beijar
Vou cantar Maimbê
Pra você se acabar

Maimbê, Maimbê, Dandá
Maimbê, Maimbê, Dandá (4x)

Zum Zum Zum
Zum Zum Baba

Significado

O compositor Mateus Aleluia, 73, coautor desta música que estourou no Carnaval de Salvador em 2004, diz que "Maimbê" é uma corruptela de Maiombe, floresta "enigmática" que fica em regiões de Angola, da República Democrática do Congo, do Congo e do Gabão, na África, próximo ao rio Congo. "Dandá" refere-se a Dandalunda, inquice (divindade da tradição banto) dos rios e da fertilidade. "Vou cantar Maimbê", diz ele, é conjurar toda cultura africana trazida ao Brasil.

Já "zum zum zum zum zum baba" é uma "sonoridade que prende, complementação de uma ideia", segundo Aleluia, que destaca a semelhança da onomatopeia com aquelas cantadas em músicas de alguns países africanos.

Fernando Gonsales

Endereço da página:

Links no texto: