Folha de S. Paulo


Ao tornar-se paulistano, d. Paulo Arns fez poema para a cidade de São Paulo

Durante a ditadura militar, o catarinense cardeal dom Paulo Evaristo Arns, à época arcebispo de São Paulo, conclamou a cidade, "com urgência, a voltar-se para a periferia", em um poema que fez para agradecer o título de cidadão paulistano, concedido em 1978.

De pé, na tribuna da Câmara Municipal no dia 14 de março daquele ano, dom Paulo reconheceu: "Enquanto o ferro e o cimento lançavam para os ares / a imagem do gênio e da audácia paulistana / a periferia amassava o barro / e recolhia os latões / para a morada daqueles que construíam nossa opulência".

Então, ele urdiu: "Se a cidade quer sobreviver com dignidade / há de cuidar da promoção de todos os que aqui estão. / E não é tarefa impossível".

Aloisio Mauricio - 02.jul.16/Fotoarena/Folhapreess
Dom Paulo Arns durante comemoração pelos 50 anos de ordenação episcopal
Dom Paulo Arns durante comemoração pelos 50 anos de ordenação episcopal

A sua "Oração pelo Título de Cidadania" ficou sob a guarda do ex-presidente do Superior Tribunal Militar Flávio Bierrenbach, que a mostrou à Folha por ocasião do aniversário de São Paulo, nesta quarta-feira (25).

À época vereador, Bierrenbach concedeu o título em protesto contra os militares ao frade franciscano, que morreu em dezembro, aos 95 anos, como símbolo da ala progressista da Igreja Católica.

"O Poder Legislativo, esvaziado pelo autoritarismo do momento, reencontra sua plena dignidade para sacramentar, com o pálio da cidadania adotiva, um homem cuja simplicidade compreende a angústia e o sofrimento, plantando a semente da esperança", justificou o então vereador em seu discurso.

Hoje, Bierrenbach atribui a iniciativa a algo que naquele momento ainda não compreendia. "Eu não pensava isso na época, mas hoje percebo. Dom Paulo foi um De Gaulle brasileiro, um general de batina, porque liderou uma resistência", comparou.

Ex-presidente da França, Charles de Gaulle liderou a resistência ao nazismo em seu país na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

No Brasil da ditadura militar (1964-1985), dom Paulo "sensibilizou a todos e ganhou a dimensão que só é dada aos líderes", reconheceu Fernando Henrique Cardoso.

Então com 46 anos, FHC assinou, como "sociólogo e professor na Universidade de Cambridge, na Inglaterra", um artigo na Folha, naquele 14 de março, em homenagem ao bispo pelo título concedido.

"Era o líder, não porque tivesse carisma: era o político, não porque fosse o homem de facção: era o pastor, não porque estivesse coberto pelas vêstes cardinalícias apenas", descreveu o agora ex-presidente, referindo-se à missa que dom Paulo rezou por Vladimir Herzog.

"Era tudo isso porque restituía à comunidade paulista o senso do dever, a coragem do dizer, a serenidade de quem não se apressa, mas não se desvia do rumo traçado."

No poema, dom Paulo lembrou dos pobres, dos índios e do imigrante: "desprovido de recursos, / traz possibilidades insuspeitas / para a renovação dos povos. / Ele não só nos preserva dos perigos da instalação, / do aburguesamento / e da própria estagnação, / porque injeta novo sangue e nova imaginação / a todo corpo social, / mas também acorda dentro de nós / a humildade e o arrojo".

E concluiu que o seu título era de todos os excluídos: "trago dentro de mim / também os dois terços da população que aqui não nasceram, / mas, que a partir de hoje / e talvez mesmo do dia de sua chegada, / têm o mesmo direito à cidadania".


Endereço da página:

Links no texto: