Folha de S. Paulo


Palco de chacina em Manaus tenta voltar à normalidade em meio à tensão

Marlene Bergamo - 14.jan.2017/Folhapress
Agente da Companhia de Operações Especiais no presídio em Manaus onde morreram 59 detentos
Agente da Companhia de Operações Especiais no presídio em Manaus onde morreram 59 detentos

"Aqui estavam os mortos", explica um funcionário do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) ao juiz Luís Carlos Valois, da Vara de Execução Penal de Manaus, diante das primeiras celas do presídio, separado da entrada por quatro portões.

No último sábado (14), a reportagem da Folha acompanhou a inspeção de Valois no local. Foi a primeira equipe de jornalismo a entrar no palco do segundo maior massacre em presídios do país, com um saldo de 59 assassinados durante o Ano-Novo, em ação vinculada à disputa entre facções criminosas.

O Compaj fica ao final de uma via de 2 km, a cerca de 30 km do centro de Manaus, em área de mata. A entrada, pela BR-174, é controlada por uma barreira policial formada por PMs e, agora, pela Força Nacional –um contingente de 99 homens chegou à cidade na semana passada.

Para entrar no complexo, Valois e a reportagem foram escoltados por dez homens encapuzados e armados da Companhia de Operações Especiais (COE), a unidade de elite da PM do Amazonas.

A primeira parada é nas celas da entrada, reservadas ao "seguro", onde ficam presos ameaçados pelo restante dos detentos. Foi o principal alvo do massacre –a grande maioria dos que estavam ali foi morta e decapitada. Alguns foram carbonizados vivos.

Na hora da visita, apenas duas celas estão ocupadas por presos sentados sobre colchões no chão, enquanto o local recebe os últimos reparos: o piso tem alguns restos de construção, as paredes foram repintadas, e a câmera de segurança, substituída. Um eletricista cuidava da fiação elétrica. O ar cheirava a tinta e a outros produtos químicos.

A próxima parada é um grande refeitório com acesso a dois dos quatro pavilhões do presídio, cada um deles com dois longos corredores de celas. Atualmente, o Compaj, maior presídio do Amazonas, abriga 1.043 presos.

CHUVA, CHUVA

Embora já reformado, o refeitório está com o piso inundado pela tempestade amazônica da véspera –ainda falta repor os telhados acima da laje, explicou um funcionário.

Ao perceber a movimentação, os detentos se agitam, o ruído vindo das celas cresce, e vários gritam "chuva, chuva", gíria para policiais. "Tá tranquilo, é só o juiz e a comitiva dele", grita de volta um agente penitenciário.

O alvoroço diminui quando Valois se aproxima de um dos corredores de celas, separado do refeitório por uma porta com grade. Aos detentos mais próximos, o juiz pergunta se a comida está normal.

"Tá tranquilo", responde um preso. "A situação é só a nossa visita mesmo, doutor. Tem previsão, doutor?" "Vamos regularizar. Vou conversar com o diretor quando sair, tá?", responde Valois.

A retomada, no entanto, ainda está sem data, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária. Foi justamente no dia de visita no Ano-Novo que a rebelião teve início.

Entre dois pavilhões, a quadra e o corredor que aparecem em vários dos vídeos do massacre: foi ali que ocorreram os esquartejamentos.

O chão encharcado umedece o sapato e as meias e cria uma incômoda ligação com o piso, encharcado de sangue apenas alguns dias antes.

No terceiro pavilhão, mais gritos de "chuva". Da cela, alguns presos usam espelhos como retrovisores para ver o que está acontecendo.

A reportagem tenta usar o celular, mas não há sinal. Funcionários explicam que a recepção é difícil no presídio, compensada pelos presos com antenas improvisadas.

A visita dura cerca de 15 minutos. "Não quis entrar no corredor porque me viram e não falaram nada", diz Valois. "A minha obrigação é saber da situação dos presos. A única coisa de que reclamaram foi a visita, mas isso tem de estar suspenso por enquanto."

Na curta caminhada de volta, um PM se aproxima do juiz para contar, impressionado, como os presos fugiram pulando o muro de cerca dez metros que separa o complexo da mata. "Quando eles achavam a oportunidade, pulavam em grupos de 30 a 40, mesmo com as viaturas lá, e corriam pra tomar a selva."

De volta ao prédio da administração, um homem algemado chama o juiz. É um dos 215 presos que fugiram no Ano-Novo e acabava de ser recapturado –outros 144 continuavam soltos até segunda (16).

"Doutor, estou com dois anos preso no sistema pelo roubo de um celular. Fugi por causa dessa onda que deu aí, senhor, mas estou praticamente com a minha carga paga. Eu não sei nem como que está a minha pena aí, doutor", diz, em tom de súplica.

O juiz promete revisar o caso. Por causa da fuga, porém, a chance de progressão de pena agora é mínima.

Já no carro, Valois –no presídio pela primeira vez após negociar o fim da rebelião e testemunhar parte da carnificina– respira aliviado: "Nunca tinha ficado tenso antes, trabalho aí há uns 10, 15 anos."

"O meu lado profissional diz que está tudo ok. Depois de um negócio desse jeito, tem alimentação, já estão reformando tudo. Mas, pessoalmente, foi duro entrar aí."


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