Folha de S. Paulo


Clínica clandestina no Rio que gerou decisão pró-aborto está abandonada

Luiza Franco/Folhapress
Clínica de aborto em Duque de Caxias (RJ), que está desocupada desde prisão de funcionários em 2013

Portão de ferro fechado com cadeado, vidros de janela quebrados, mato subindo pelas paredes.

Assim está o prédio onde funcionou, até 2013, a clínica clandestina de aborto que está no centro de uma decisão jurídica inédita.

Em deliberação sobre o caso na última terça-feira (29), a maioria dos ministros da primeira turma do STF (Supremo Tribunal Federal) entendeu que praticar aborto nos três primeiros meses de gestação não é crime.

A decisão vale apenas para o caso da clínica, mas pode ser utilizada para fundamentar outras decisões sobre o mesmo tema.

O prédio da clínica, desocupado e à venda, fica a aproximadamente 30 km do centro de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense (RJ). É o único edifício da rua sem saída, de casas de alvenaria e terra batida.

PRISÃO

Vizinhos relutam em falar sobre o dia 2 de março de 2013, quando a Polícia Civil entrou no local e prendeu as cinco pessoas agora beneficiadas pelo habeas corpus dado pelo Supremo.

O médico, a enfermeira, um policial civil, apontado como segurança da clínica, uma jovem tida como a pessoa que fazia o contato com as pacientes e um taxista que, segundo a investigação, as buscava em um bairro próximo e as levava até lá.

"Todo mundo ficou muito surpreso. A gente via as mulheres entrando, mas pensávamos que fossem moradoras", diz Priscila Araújo, que mora em frente ao edifício. "Hoje o pessoal não gosta de falar daquele dia porque tem medo", diz ela, que não sabia da decisão do STF.

O processo ainda corre na Justiça do Rio, mas os réus respondem em liberdade desde 2014, quando o relator do caso no STF, ministro Marco Aurélio Mello, concedeu liminar para soltá-los. A votação desta semana confirmou a decisão.

Os funcionários respondem pelos crimes de aborto e formação de quadrilha. Já o médico responde também por tentativa de homicídio.

DEFESA E INVESTIGAÇÃO

Segundo a investigação, ele fazia o procedimento em uma paciente quando foi surpreendido pela polícia. Ao tentar fugir, deixou-a sangrando na cadeira ginecológica. Ele é acusado em mais dois processos de aborto, além do caso de Caxias.

Seu advogado, Marcel Garey, comemorou a decisão do Supremo Tribunal Federal. "A defesa nega que ele estivesse praticando aborto. Estava fazendo outro procedimento ginecológico. Mas, se a acusação persistir nesse sentido, meu cliente deve ser beneficiado."

O advogado do taxista, Ronaldo Figueiredo Brito, diz que "criminalizar o aborto é criminalizar a pobreza". "As mulheres que vão a esse tipo de clínica são, em geral, as mais pobres, e nem sempre têm atendimento seguro."

Em seu voto sobre o caso, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso defendeu que os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto no primeiro trimestre violam direitos fundamentais da mulher.

As violações são, segundo o voto do ministro, à autonomia da mulher, à sua integridade física e psíquica, a seus direitos sexuais e reprodutivos e à igualdade de gênero.

"Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não", escreveu o ministro.

"O direito à integridade psicofísica protege os indivíduos contra interferências indevidas e lesões aos seus corpos e mentes, relacionando-se, ainda, ao direito à saúde e à segurança", afirmou Barroso.

"Ter um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher", disse.

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ENTENDA

1. O que foi decidido no Supremo?
A maioria da primeira turma do STF (Supremo Tribunal Federal) entendeu, na última terça (29), que interromper a gravidez voluntariamente nos três primeiros meses de gestação não é crime.

2. O que os ministros julgavam?
O caso específico de um habeas corpus de 2014 que revogou a prisão preventiva de cinco médicos e funcionários de uma clínica clandestina de aborto em Duque de Caixas (RJ), fechada em 2013.

3. Como votou cada ministro?
O parecer foi de Luís Roberto Barroso. Os ministros Rosa Weber e Edson Fachin acompanharam o voto de Barroso na íntegra. Marco Aurélio e Luiz Fux não se manifestaram sobre o tema, votaram apenas pela revogação das prisões preventivas do caso analisado.

4. O entendimento vale para todos os casos de aborto a partir de agora?
Não, apenas para esse caso do Rio de Janeiro.

5. Outros juízes podem adotar o mesmo entendimento?
Sim. Embora não tenha efeito vinculante (quando decisões valem para outros tribunais que discutem a mesma questão), tem o peso de uma manifestação majoritária de uma turma do STF.

6. Isso pode influenciar futuros julgamentos no tribunal?
Sim. É um indicativo de como parte dos ministros do STF vai votar em ações futuras, embora eles sempre possam mudar sua posição. Manifestações anteriores de Celso de Mello sugerem que seu entendimento seja pela descriminalização do aborto. Dos atuais ministros da corte, só Ricardo Lewandowski votou contra a interrupção da gravidez em casos de anencefalia (má-formação incompatível com a vida).

7. Qual a justificativa jurídica dos ministros?
Para eles, os artigos do Código Penal, de 1940, que criminalizam o aborto para a mulher e os profissionais que o praticarem são incompatíveis com a Constituição de 1988.

8. Em que condições se entendeu que o aborto no início da gravidez não é crime?
Em quaisquer condições e por quaisquer motivos. O Código Penal só permite o aborto em casos de estupro ou de risco de vida para a mãe. Em 2012, o Supremo também decidiu que a interrupção da gravidez de fetos com anencefalia não é crime.

9. Quais os argumentos de cada lado?
Entidades contra a liberação do aborto argumentam que é crime porque há vida desde a concepção. Dizem ainda que o STF faz "ativismo judicial" e legisla no lugar no Congresso, onde o texto não passaria, segundo as entidades.

Já associações a favor da legalização dizem que a criminalização afeta mulheres pobres e que o STF pode decidir sobre o assunto, que trata de entendimento constitucional.

10. Como é em outros países?
O aborto é permitido na Argentina se houver risco de morte à mulher ou se a gravidez for resultado de estupro.

Já no Uruguai e em Cuba, a interrupção é permitida em quaisquer circunstâncias até a 12ª e a 10ª semana de gravidez, respectivamente. Estados Unidos e a maior parte dos países da Europa também permitem a interrupção da gravidez por simples solicitação da gestante.

11. E no Legislativo?
Uma série de projetos de lei tramita no Congresso tanto no sentido de legalizar quanto no de endurecer as regras para o aborto legal.

Ainda não há decisão final sobre eles. Um projeto do ex-deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), aprovado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara no ano passado, estabelece penas específicas para quem induzir ou orientar gestantes ao aborto.

Outro projeto de lei, do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), apresentado em 2015, revoga os artigos do Código Penal que consideram crime a interrupção voluntária da gravidez.


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