Folha de S. Paulo


Lourdes das Neves Ferreira, 64

Mãe de vítima cita discriminação 29 anos após acidente com césio

RESUMO O acidente com o césio-137, material radioativo, em Goiânia (GO), completou 29 anos em setembro. Ele levou 112,8 mil a serem monitoradas, das quais 129 tiveram contaminação corporal externa ou interna. Quatro pessoas morreram em consequência da síndrome aguda da radiação, entre elas Leide das Neves Ferreira, 6. O tio da garota, Devair Ferreira, era dono de um ferro-velho e comprou a peça com a fonte radioativa –retirada de aparelho de radioterapia achado nos escombros de um hospital abandonado. Ivo Ferreira, pai de Leide, levou fragmentos do césio para casa. A mãe dela, Lourdes, 64, diz ainda ser vítima de discriminação quase três décadas depois.

Weimer Carvalho/Folhapress
Goiânia, GO, BRASIL 28-09-2016, Lourdes das Neves Ferreira mostra celular com imagem da filha Leide das Neves, a única pessoa a morrer quase que imediatamente em decorrência da radiação do Césio, no acidente em Goiânia, em 1987. O caso completa 29 anos neste mês. A mãe da menina, que teve mais dois filhos (um desenvolveu sequelas após contato com material radioativo). A menina teria ingerido partículas do césio, que foi levado para a casa pelo pai, Ivo. A garota morreu dia 23 de outubro de 1987, cerca de um mês após o acidente, e o pai dela, em 2003, de efisema pulmonar. Segundo informação da atual presidente da Associação das Vítimas do Césio, Lourdes das Neves foi contaminada, ficou cerca de 90 dias em isolamento, mas não sofreu com sequelas.
Lourdes das Neves Ferreira, mãe de Leide, 6, vítima do acidente com material radioativo

Meu marido, Ivo, foi à casa do irmão, Devair [dono de um ferro-velho], que mostrou para ele a peça [sem saber se tratar de material radioativo]. Ele gostou, ficou curioso, enfiou uma chave de fenda dentro de um buraquinho que ela tinha. Tirou um pouquinho de pó e levou para casa num papel, no bolso da bermuda.

Ele não teve malícia nenhuma. O pouquinho de pó de césio que ele levou, colocou no chão do quarto, porque brilhava, e chamou as crianças para ver: o Lucimar, 14, a Leide [seus dois filhos] e um amigo do Lucimar, que era vizinho próximo.

Foi dia 25 de setembro [de 1987]. A Leide comeu um ovo cozido com a mão suja do pó de césio. Meia hora depois começou com crise de vômito e assim foi a noite toda.

A gente só começou a ficar assustado e desconfiar do que se tratava no dia seguinte, quando começou a passar na televisão [sobre a descoberta do acidente].

ÚLTIMO CONTATO

Um ônibus da polícia saiu pegando as famílias [que tinham tido contato com o césio]. A gente foi descendo do ônibus e eles passando o aparelho [para medir a radiação]. Aqueles que estavam muito contaminados eles já levavam para o hospital.

Teve um momento que a Leide passou comigo. Pus ela sentada numa muretinha e fiquei abraçada com ela. Foi o último contato.

Aí o rapaz que estava passando o aparelho chamou ela de novo e falou: "Ela tem que ir". O aparelho não parava de apitar quando chegava nela.

O Lucimar teve queimadura na mão, na testa. [Com] a Leide foi mais sério porque ela ingeriu.

Ela foi para o hospital. Eu fiquei no estádio Olímpico. Quando eu tive notícia, ela já tinha ido para o Rio de Janeiro. Nem acreditei, porque eu não sabia nem o que estava acontecendo. Aí foi só desespero. Eu nunca imaginei que alguém fosse morrer.

O Ivo não separava dela [Leide]. Ele tinha que cuidar da mão, da perna, porque a mão dele queimou muito, e os médicos não podiam mexer porque ele estava do lado dela e ela transmitindo muita radiação para ele.

'BOMBA RADIOATIVA'

Ela [Leide] morreu no dia 23 de outubro. Ela era considerada uma 'bomba radioativa'.

A primeira vítima foi Maria Gabriela Ferreira de Abreu [mulher do Devair]. Depois a Leide. Vieram os dois caixões no mesmo avião.

Acho que foi o momento mais difícil que vivi na vida. Foi muito doloroso. O caixão muito grande. Tudo muito diferente. Diziam que o caixão tinha 700 quilos de chumbo.

Não teve velório. Foi direto para o cemitério. Estava uma população enorme esperando por não aceitarem que fossem enterrados lá.

Ficavam jogando pedra, tijolo, pedaço de meio fio. Eu estava dopada de remédio, mas via tudo. Apenas não tinha forças [para reagir].

Quando aproximei, a população acalmou. Já abaixei perto do caixão da Leide e vi o rostinho dela por um vidrinho. Tinha os minutinhos que podia ficar ali, porque tinha que enterrar logo.

O Ivo chegou do Rio no fim daquele ano. Ele se sentia culpado. O único vício que ele tinha era fumar, e ele passou a fumar mais e mais. Tem 13 anos que ele faleceu de enfisema pulmonar.

PRECONCEITO

Discriminação tem até hoje. Já aconteceu de gente procurar a dona de salão [para saber] se eu o frequentava, porque se eu fosse ela não iria mais com medo de pegar radiação.

A Leide só veio ao mundo para dar alegria. Tenho foto dela na parede aqui em casa para todo lado. O pequenininho [bisneto], de 3 aninhos, já olha e fala: "Minha tia Leide". As fotos de papel dela eu passei para o celular.

E parece que cada ano que passa eu vou sentindo mais.

Porque os primeiros anos eram uma coisa que eu não entendia. Agora que estou revivendo tudo, estou sofrendo. Parece que tudo só está acontecendo agora.


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