Folha de S. Paulo


Doria extinguirá programa, mas manterá ações anticrack de Haddad

A administração do prefeito eleito João Doria (PSDB) vai acabar com o programa Braços Abertos, marca da gestão Fernando Haddad (PT), na cracolândia. Manterá, porém, parte de suas ações, incorporadas e condicionadas ao Recomeço, da gestão estadual de Geraldo Alckmin (PSDB).

Essências do programa de Haddad, a hospedagem e a remuneração por trabalhos específicos (como varrição) serão preservadas, mas sob uma condição: que os dependentes se comprometam a fazer tratamentos e desintoxicação ligados ao Recomeço, segundo o secretário de Desenvolvimento Social do Estado, o tucano Floriano Pesaro.

O certo é que a bandeira anticrack da gestão petista perderá o nome, como Doria já havia prometido. "Tudo será Recomeço", diz o secretário do governo Geraldo Alckmin.

Os programas da prefeitura da cidade e do Estado de SP para dependentes de crack têm princípios opostos.

O Recomeço, criado em 2013 pela gestão Alckmin, propõe tratamentos por internação, às vezes involuntárias, e passagens por comunidades terapêuticas.

Já o de Haddad, do início de 2014, preconiza a redução de danos: o dependente deve diminuir o consumo das drogas enquanto aumenta sua autonomia, sem internação, por meio da oferta de emprego e moradia. Beneficiários vivem em hotéis e trabalham em serviços como varrição e reciclagem.

Com avanços lentos e pontuais, essas ações são alvo de críticas, especialmente pelo cenário desolador que pouco muda na cracolândia, com usuários perambulando pelo centro da cidade e o tráfico de drogas sempre presente.

TRANSIÇÃO

Com a eleição de Doria, beneficiários do Braços Abertos temem ser despachados. Mas, segundo o secretário de Alckmin, o que acontecerá a partir de janeiro é a "integração" entre os programas. "É óbvio que ninguém vai ficar sem moradia, ninguém vai ser posto para fora [dos hotéis]."

Quem mora nos hotéis do programa ficará ali "o período necessário para fazer sua reinserção social". E o trabalho será mantido, desde que se comprove que "o sujeito esteja disposto a largar a droga". Pesaro diz que Doria "está de acordo" com as propostas. "Está sendo combinado com ele. Isso já foi amplamente discutido na formulação de seu programa de governo."

Professor do Departamento de Psiquiatria da Unifesp, Jair Mari diz que "tem pacientes que vão se dar bem com um programa e outros com outro". "Por que não combinar os dois programas?"

Já para o psiquiatra Dartiu Xavier, também professor da Unifesp e ex-integrante do Braços Abertos, "esse híbrido pode se tornar um 'Frankenstein', e a maioria não vai querer passar obrigatoriamente por tratamento para ter moradia e trabalho. "O caminho é melhorar a vida antes de tirar a droga, e não o contrário."

PROGRAMAS

Hoje, os usuários usam a estrutura de ambos. Sob o ardente sol de quarta (19), eles consumiam crack no meio da rua; outros esperavam para tomar banho no prédio do Recomeço, um dos serviços que elogiam. Em frente, na tenda do Braços Abertos, com violão e pandeiro, um grupo participava de uma sessão musical com técnicos da ação.

A taxa de sucesso dos projetos é aferida de forma diferente: no caso do Recomeço, o governo diz que o índice de recuperação é de 70%, sem mostrar dados que comprovem a estatística.

Segundo a gestão, das 2.817 pessoas que passaram em comunidades terapêuticas em 2015, 1.809 continuaram referenciadas nos serviços de saúde e 862 nos serviços de assistência social –mas não há detalhes de que forma e com que frequência.

Já no Braços Abertos, segundo pesquisa da Plataforma Brasileira de Política de Droga, 67% reduziram o uso de crack após ingressar no programa. Mas foram colhidos depoimentos de só 80 beneficiários, quando o total era de 370. Hoje, são cerca de 500.

A equipe de Doria diz que "nada será interrompido, mas sim, possivelmente, transformado". "Inicialmente será feito o plano de transição do modelo de atendimento", disse, em nota.

Para Paulo Leal, 53, ex-usuário há dois anos, "nenhum projeto sozinho consegue tirar alguém das drogas –80% depende do usuário". Mesmo assim, avalia, a cracolândia, onde ele viveu por dez anos, "nunca vai acabar".

CARTAS AO PREFEITO

No dia seguinte à eleição de João Doria (PSDB), os moradores de um edifício no centro da capital pediram não uma (como é o normal), mas duas assembleias entre eles.

Como uma terapia em grupo, desabafaram sobre um medo em comum: perder o teto e o emprego quando Doria assumir a prefeitura.

Um grupo de 106 beneficiários do Braços Abertos, programa da prefeitura, mora ali desde 1º de agosto, quando o prédio com 27 quartos foi inaugurado. O último dos sete andares, com sala de TV e laje onde às vezes há churrascos, abriga as assembleias.

Foi ali que, dois dias após as eleições e um dia depois da assembleia, assistiram a uma entrevista na qual ouviram Doria dizer que os usuários da cracolândia eram "pessoas condenadas à morte".

Esses beneficiários moraram anos na rua, no meio da cracolândia, a 1,5 km dali. Hoje, admitem voltar para lá de vez em quando para comprar pedras de crack. Continuam usando, mas com menos frequência, segundo dizem.

Miúda, Fernanda Dias, 35, abre um sorriso quando recebe a reportagem em seu quarto. Ela está varrendo o chão, e o cão do vizinho, Pancinha, brinca com ela, que pede "desculpa pela bagunça", embora o quarto esteja organizado.

Cabeleireira pelo Braços Abertos, vive com o marido no prédio. Os dois se conheceram na cracolândia, para onde voltam aos fins de semana para fumar crack.

"Durante a semana, não fumamos mais. Andamos mais limpinhos, demos uma engordada", diz ela, usuária há 11 anos, com cinco de cracolândia nas costas. "Se não estivéssemos aqui, estaríamos no fluxo usando a droga."

"São quase 13h e eu não fumei nenhuma pedra", constata Yóry Kym, 56. "Antes do projeto, já teria fumado quatro. Hoje, passo dois, três dias sem fumar." Orgulhoso das manchas de tinta em sua roupa, resultado de seu trabalho pintando telas, ele diz que "estaria numa calçada qualquer" se não estivesse no hotel. "Se o programa acabar, vou ter que morar na rua de novo."

Ele diz gostar de ter um lugar para se fechar e guardar suas tintas e telas. E é crítico do tratamento por internação –"voltam loucos por um trago, na maior fissura"– e nas clínicas religiosas –"nunca ouvi dizer que 'Ave Maria' desintoxica drogado."

Depois de viver o medo com o possível fim do programa, os moradores do prédio agora discutem soluções. Escreveram cartas para o prefeito eleito e pediram para o coordenador do hotel gravar vídeos para colocar em redes sociais, contando suas histórias.

As cartas foram entregues a Eduardo Suplicy (PT), eleito vereador, para que ele repasse a Doria. Ele diz que o fará em novembro, quando têm um encontro marcado.

Nas cartas, usuários falam sobre como querem melhorar, lembram suas famílias, agradecem técnicos do projeto, fazem reclamações, como a de que os quartos não são limpos, e pedem que Doria mantenha o Braços Abertos.


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