Folha de S. Paulo


Sem delegado, polícia de SP agora usa vídeo on-line para prisão em flagrante

A Polícia Civil de São Paulo realizou no último sábado (3) uma prisão por tráfico de drogas que se tornou o principal assunto na cúpula da segurança paulista. O motivo de tanto furor não foi pela quantidade de entorpecentes ou de pessoas envolvidas, mas por ter sido o primeiro flagrante por videoconferência registrado em todo o Estado.

A experiência, considerada exitosa, ocorreu no litoral norte. Duas pessoas foram presas com entorpecentes por policiais militares de Ubatuba e levadas para uma delegacia do mesmo município.

A diferença dessa prisão se deu a partir daí. Tanto os policiais quanto os suspeitos contaram suas versões para uma delegada que estava a cerca de 50 km de distância, na vizinha Caraguatatuba.

Diego Padgurschi/Folhapress
Polícia civil de São Sebastião faz videoconferência para registro de flagrante
Polícia civil de São Sebastião faz videoconferência para registro de flagrante

Todos se comunicaram diante de grandes monitores (com equipamentos de áudio e som) instalados em salas preparadas especialmente para a realização dessas audiências por videoconferência.

Interrogatórios e depoimentos foram gravados em vídeo. A impressão do auto de prisão em flagrante ocorreu, porém, em Ubatuba, como se a delegada Junia Cristina Macedo Veiga e sua equipe tivessem se deslocado até lá.

O projeto, idealizado pelos policiais do litoral norte, deve ser levado a outras áreas. O governo paulista deu aval à polícia para sua implantação em diferentes regiões do Estado onde o delegado de uma cidade de médio porte acaba responsável também pelas prisões em flagrante nos municípios vizinhos.

PROBLEMA CRÔNICO

Pela legislação brasileira, excetuando-se os crimes militares, somente o delegado de polícia pode autuar uma pessoa em flagrante.

Ele pode até mandar soltar um suspeito, mesmo que a PM tenha dado voz de prisão. Isso ocorre algumas vezes nos crimes de tráfico (que é inafiançável) e porte de drogas (no qual não há prisão).

A criação de flagrantes remotos no litoral norte é fruto de dois problemas quase insolúveis para a polícia.
A grande distância de uma localidade e outra —o litoral norte tem 200 km de extensão linear— e um deficit de efetivo que atinge toda a Polícia Civil do Estado.

Segundo dados do próprio governo, no final de 2015 havia 2.903 delegados de todas as carreiras e carência de ao menos 560 profissionais.

Esse deficit ainda é considerado pelos delegados paulistas como subdimensionado, já que não considera o crescimento populacional.

Delegados no Estado de SP -

"Nós temos que ter criatividade. Estamos passando por uma crise e ninguém consegue repor o efetivo na proporção que precisa. Então, precisamos criar meios para que a gente possa atender a demanda", disse o delegado Célio José da Silva, responsável pelas cidades do litoral norte de São Paulo.

A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a Associação Paulista do Ministério Público, porém, fazem ressalvas à medida, que, segundo as entidades, pode prejudicar o suspeito.

De acordo com o delegado seccional de São Sebastião, Múcio Mattos Monteiro de Alvarenga, idealizador do projeto, uma das vantagens da central remota de flagrantes é não retirar o policiamento ostensivo de suas cidades —os PMs assim não precisam se deslocar a outra localidade para escoltar os presos.

Para evitar contestações judiciais, essa central da Polícia Civil possui monitoramento por câmeras o tempo todo. Só a sala para reunião do suspeito com seus advogados não tem filmagem nem gravação do som ambiente.

"As pessoas [presos e advogados] poderão questionar as formalidades [desse tipo de flagrante] quando quiserem questionar o mérito. Mas estamos seguindo todas as normas de videoconferências", disse o delegado.

Número de habitantes por delegado -

CAUTELA

As prisões em flagrante por videoconferência podem reduzir o tempo de espera nas delegacias, mas o modelo precisa ser visto com ressalvas, segundo uma delegada, um procurador e um advogado ouvidos pela reportagem.

O procurador Márcio Sérgio Christino, vice-presidente da Associação Paulista do Ministério Público, pede cautela nessa implementação.

O principal problema, segundo ele, é não ser obrigatória a participação de defensores dos suspeitos durante os interrogatórios, como ocorrem nas teleconferências realizadas pela Justiça.

"Lá [Justiça], os advogados acompanham nas duas pontas", disse o procurador.

Segundo ele, a ausência do defensor e também do próprio delegado (de maneira física) aumenta as chances de abusos por parte de policiais no momento do flagrante.

"Quem garante que o policial não diga para o suspeito: 'Olha bem o que você vai falar, porque te pego depois'."

Para o presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Arles Gonçalves Júnior, do ponto de vista da defesa, a videoconferência é prejudicial ao suspeito.

"Uma coisa é ver a pessoa pelo vídeo e, outra coisa, pessoalmente. No interrogatório [presencial], você percebe outras coisas, além da fala da pessoa", afirmou ele.

Por outro lado, o advogado afirma que a polícia tem atualmente um déficit de cerca de 14 mil homens e não são raros os casos de flagrantes que demoram até oito horas para começar apenas à espera da chegada do delegado.

"Do ponto de vista da segurança pública, é uma alternativa possível. É uma tentativa de a polícia, com um efetivo extremamente reduzido, atender melhor a população", disse. "Deve acelerar o atendimento. Se isso é bom ou ruim, nós vamos ter que ver", completou o advogado.

Para a presidente da Associação dos Delegados de São Paulo, Marilda Pansonato Pinheiro, a videoconferência é uma realidade em razão da "carência de policiais civis em todo Estado".

"Isso evita deslocamentos, especialmente de delegados que, em alguns casos, atendem de três a quatro cidades, o que inviabiliza sua presença com a agilidade necessária", afirmou a presidente.

Ainda segundo a policial, recentemente a associação levou até o secretário de Segurança do Estado, Mágino Alves Barbosa Filho, um pedido de urgência para a nomeação de todos os aprovados no último concurso público.

"O quadro é grave e exige atenção já que as investigações ficam prejudicadas. A Polícia Civil, apesar disso, tem feito excelente trabalho, a fim de não penalizar ainda mais a sociedade que já amarga a violência urbana."

O Tribunal de Justiça de São Paulo foi procurado para comentar o assunto, mas ninguém foi indicado para falar sobre esses flagrantes.

A Defensoria Pública, por sua vez, disse que ainda tem poucas informações sobre a implantação do projeto e, por isso, não iria se manifestar.


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