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'Tive zika e artrose, mas parque Serra da Capivara é maravilhoso', diz Guidon

Joel Silva/Folhapress
A arqueóloga Niède Guidon, mantenedora do Parque Nacional da Serra da Capivara, no interior do Piauí
A arqueóloga Niède Guidon, mantenedora do Parque Nacional da Serra da Capivara, no interior do Piauí

Aos 83 anos, a arqueóloga Niède Guidon continua a dedicar a vida às pinturas rupestres que descobriu na década de 1970, em pleno semiárido brasileiro, no interior do Piauí.

"Tive zika há dois anos e artrose terrível na bacia e nas pernas, mas acho esse parque maravilhoso", afirmou ela à Folha, em entrevista na sua residência em São Raimundo Nonato, interior do Piauí, onde fica o Parque Nacional da Serra da Capivara –atualmente, em grave crise financeira.

Foi por iniciativa e insistência dela que o parque foi criado pelo governo brasileiro, em 1979. Na área de 130 mil hectares (cerca de 85% do município de São Paulo), estão pouco mais de mil sítios com pinturas pré-históricas, de até 15 mil anos atrás, que ajudaram a explicar a origem do homem americano.

A serra é também um centro com exposição da megafauna com animais desaparecidos há 10 mil anos. Entre os vestígios estão um crânio de bicho-preguiça, mastodontes (que pareciam elefantes de cinco toneladas) e tigre-dentes-de-sabre (felino extinto que pesava até 300 quilos).

Na região onde fica o parque, foram encontrados os mais antigos vestígios do homem nas Américas, que fundamentam a teoria de que a ocupação do continente se deu pela África, há mais de 50 mil anos, e não pelo estreito de Bering, entre a Ásia e a América do Norte, há 13 mil anos.

A tese ainda é controvertida. Fósseis encontrados próximos à Pedra Furada foram datados como de 50 mil anos atrás –mas a maioria da comunidade científica ainda questiona a evidência. Para eles, os pedaços de carvão não faziam parte de uma fogueira construída por mãos humanas, como argumentam os cientistas do parque, mas foram resultado de um incêndio natural.

O grupo de pesquisadores liderados por Niède rebate, dizendo que o fogo natural deixaria marcas em todos os fósseis ao redor, o que não ocorreu. As pesquisas continuam, com financiamento do CNPq e do governo francês.

Não fosse o esforço da arqueóloga, é provável que boa parte desse material já tivesse desaparecido. "Na época, o governo fez o que chama de 'parque no papel': cria e não põe ninguém para trabalhar", diz Guidon. Caçadores e moradores iam à reserva atrás de caça e lenha, e as pinturas não tinham qualquer tipo de manutenção.

Por iniciativa dela e de outros pesquisadores, uma fundação foi criada para tentar proteger o parque. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, a Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano) fez um plano de visitação, criou circuitos turísticos, abriu e sinalizou estradas, protegeu pinturas e ajudou a implantar a infraestrutura do local.

Agora, a organização, presidida por Guidon, pede mais dinheiro para dar continuidade ao trabalho, como mostrou a Folha no último domingo (21). Em crise, o órgão, que ajuda o ICMBio (Instituto Chico Mendes) a gerir o parque, dispensou funcionários e ameaça encerrar as atividades no local.

DE GÊNIO A DEMÔNIO

Formada pela USP (Universidade de São Paulo) e pós-graduada na França, a paulista de Jaú é conhecida pelo temperamento difícil. Na entrada de sua casa, que fica nos fundos da Fumdham, rodeada de pássaros, flores e plantas, uma placa mostra a famosa frase de Dante Alighieri: "Deixai toda a esperança, ó vós que entrais", escrita no portal do inferno, no poema "Divina Comédia".

"Aqui é um inferno", diz Guidon, sobre os problemas com que precisa lidar diariamente. Quem trabalha com ela reconhece sua genialidade e sensibilidade ao preservar o parque.

Tudo, desde os mínimos detalhes, foi planejado por Guidon: as estradas têm valas para o escoamento de água e placas de sinalização usam desenhos pré-históricos. A água da chuva é tratada e reaproveitada, e caminhões-pipa abastecem tanques para os animais terem o que beber durante a estiagem. Até a cor das guaritas do parque foi especialmente desenvolvida para não agredir o visual.

"Nós criamos um parque de primeiro mundo", diz a arqueóloga, que já tirou dinheiro do próprio bolso para pagar funcionários. Neste mês, fez um empréstimo pessoal de R$ 15 mil para quitar impostos. Mas Guidon também coleciona desafetos, especialmente entre políticos.

Alguns a chamam de "demônio", por suas assertivas. Já denunciou ameaças de morte, pedidos de propina e vive em queda de braço com o governo federal, atrás de recursos para o parque. Seu protagonismo, por vezes, é visto com maus olhos. Num processo na Justiça Federal, advogados da União chegaram a argumentar que o valor pedido para a preservação do parque é "desproporcional".

Um dos poucos políticos com que a arqueóloga tem um bom relacionamento, o deputado Paes Landim (PTB-PI) costuma dizer: "Com a Niède, não dá para ouvir o que ela fala; tem que ver o que ela faz". "É uma mulher extraordinária, trabalhadora, sofrida", diz Landim à Folha. "Não há humor que resista a essas dificuldades todas. É uma guerreira."

A arqueóloga agora aguarda recursos para manter os 40 funcionários do parque. Desde a semana passada, eles foram dispensados e estão em aviso prévio. Se não conseguir a verba para pagá-los, a Fumdham deve se retirar da cogestão do parque.


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