Folha de S. Paulo


Direito ao esquecimento 'não existe' e é usado para censura, afirma advogada

Daniel Cima/CIDH
28.03.2014 Relatora Especial para la Libertad de Expresión, Catalina Botero foto: Daniel Cima para CIDH ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Catalina Botero, ex-relatora especial para liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos

Prestes a ser julgado no Supremo Tribunal Federal, o chamado direito ao esquecimento é base para decisões, mundo afora, que mandam apagar informações na internet. Mas ele "não existe", diz a advogada colombiana Catalina Botero, ex-relatora especial para liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos).

"É uma construção recente, uma categoria ambígua do direito, que se presta em alguns países, como o Brasil e o Chile, para decisões que censuram informações", diz ela, em entrevista. Já em outros países latino-americanos, como a Colômbia, "os casos estão se resolvendo de maneira mais razoável", usando "ferramentas clássicas" como a defesa da intimidade.

A categoria do direito ao esquecimento surgiu aos poucos, para defender devedores mantidos indefinidamente em bases de dados financeiras após pagarem suas dívidas. Mas vem migrando para o jornalismo, principalmente a partir de uma decisão de 2012 na Europa, contra o Google.

E agora, diz Botero, "enquanto de um lado da balança está um direito que ninguém sabe onde começa, onde termina, em que consiste, do outro estão direitos consistentes, que são essenciais numa democracia", como à informação e ao conhecimento. Leia a entrevista a seguir.

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Folha - O direito ao esquecimento vem sendo usado como direito à censura na América Latina?

Catalina Botero - Em primeiro lugar, o direito ao esquecimento, como direito fundamental, não existe. É uma construção recente, uma categoria ambígua, que efetivamente se presta em alguns países, como o Brasil e o Chile, para decisões que censuram informações que o público tem o direito de conhecer. Em outros, onde não se aceitou a categoria, como a Colômbia e a Argentina, o que acontece é que os casos estão se resolvendo de maneira mais razoável, por exemplo, com a defesa da intimidade e o direito ao bom nome. Eles foram resolvidos com as categorias tradicionais do direito constitucional, sem gerar ações de censura.

Existe um limite razoável para o direito ao esquecimento ou a simples aceitação de que é um direito representa ameaça à liberdade de expressão?

A simples aceitação da categoria jurídica é uma ameaça, por uma razão clara: ela é absolutamente ambígua, quer dizer, é qualquer coisa. O direito ao esquecimento pode amparar, por exemplo, que pessoas que tenham sido condenadas por crimes gravíssimos desapareçam com todo o seu histórico na internet. Ou que políticos que tenham sido condenados por corrupção apaguem seu histórico na internet.

Ninguém sabe qual é o limite do direito ao esquecimento, justamente porque é uma categoria que não existe no direito. É uma categoria cujas fronteiras são muito pouco claras, então serve para que se tome qualquer decisão, sem controle, porque ninguém sabe exatamente o que é.

Por isso é tão perigoso. Porque do outro lado está o direito à informação, à memória, ao conhecimento. Está, por exemplo, o direito político de conhecer as pessoas que se submetam a ser eleitas numa disputa popular. Enquanto de um lado da balança está um direito que ninguém sabe onde começa, onde termina, em que consiste, do outro lado estão direitos consistentes, que são essenciais numa democracia.

A controvérsia em torno do direito ao esquecimento se deve à era das plataformas de busca e mídia social ou é fenômeno anterior, já enfrentado pelo jornalismo em outras épocas?

A categoria foi usada originalmente para bases de dados financeiros, não no jornalismo. E se usou porque, quando uma pessoa não pagava uma pequena dívida durante um tempo curto, essas bases de dados a mantinham como devedora durante anos e anos, décadas. Por isso esse direito foi construído, para defender quem um dia simplesmente disse "não posso pagar", mas era pessoa de boa fé e tinha direito de não ser excluída do crédito financeiro.

Para isso se cria a ideia de que há um momento em que os dados de dívida pessoal devem, digamos, prescrever. Quer dizer, você tem direito de que certos dados não sejam acessíveis ao público. Mas isso, construído nas bases de dados financeiros, tem muito sentido. E demorou décadas até que o direito consolidasse a ideia de que, passado um tempo razoável, você tem o direito a que seu histórico de crédito esteja limpo.

Mas transferir essa figura para o jornalismo é perigosíssimo. Construir essa figura só no contexto das bases de dados financeiros foi muito difícil e finalmente se chegou a uma doutrina mais ou menos pacífica, mas demorou. Isso, transferido para o jornalismo, onde não é simplesmente o dado financeiro, mas todos os dados de todas as pessoas, sem limites e critérios, apaga a história de um povo.

A derrota do Google na União Europeia, a partir de uma ação na Espanha, é o acontecimento mais importante até agora, nesse contexto? Ela vem influenciando outras ações?

Em primeiro lugar, essa decisão foi mal interpretada, por algumas pessoas que não a leem e por outras interessadas em apagar seu histórico. Ela não obrigou o jornal, a imprensa a apagar a informação. A decisão se refere basicamente ao intermediário que indexava a informação, não à imprensa.

O que está acontecendo em alguns países é que se está ordenando diretamente aos meios de comunicação que eliminem a informação de seu arquivo digital. As duas coisas são perigosas, mas primeiro é preciso esclarecer que é uma sentença que não se aplica à imprensa. Que se aplica expressamente aos intermediários. Agora, aplicá-la aos intermediários, de qualquer maneira, é perigoso, porque muita gente não entra diretamente no arquivo do jornal. Mas é mais grave ordenar ao jornal que apague seu arquivo digital.

O processo europeu ainda pode ser revertido?

Sim, eu creio que é reversível. Todas as decisões podem ser revertidas. Esta foi tomada aplicando a diretriz europeia de direito ao esquecimento ao Google, entendendo que era uma base de dados. Creio que haverá decisões posteriores, porque na União Europeia há uma comissão que está estudando o tema do direito ao esquecimento, pela reação que causou essa sentença. Acredito que haverá diretrizes mais claras e mais cuidadosas a partir do término dos trabalhos dessa comissão.

O movimento pelo direito ao esquecimento é global. É possível coordenar os esforços internacionais de defesa da liberdade de expressão? Plataformas e veículos conseguirão se unir globalmente?

Sim, o movimento pela liberdade de expressão também é mundial. O problema é que às vezes os juízes são sensíveis ao tema do direito ao esquecimento porque se identificam com a pessoa que quer apagar seus dados. Mas eu creio que rapidamente isso vai sair de moda, digamos, e que é muito fácil demonstrar o perigo que significa essa categoria em matéria jurídica. O movimento de liberdade de expressão está sendo um esforço também global, para mostrar que é possível proteger a privacidade de quem tem direito a essa privacidade ou o bom nome de quem tem direito a um bom nome, sem introduzir uma categoria tão ambígua.

Como você descreveria o estágio atual desse conflito? Já cresceu a consciência de que o jornalismo precisa ser defendido?

Há uma enorme consciência de que o jornalismo precisa seguir existindo sem essas ameaças. Mas é um tema em construção. É tema de moda, o que é mais grave. E existe um problema que é legítimo: muita gente se pergunta como controlar a divulgação de uma informação privada. É uma preocupação legítima, de gente que não tem nenhum interesse público e para quem está sendo um dano brutal o que está circulando na internet sem controle.

Eu acredito que o importante é usar as ferramentas clássicas que serviram ao direito, sempre, para resolver os conflitos entre liberdade de expressão e intimidade, entre liberdade de expressão e bom nome, e estendê-las à internet, sem tomar decisões que possam afetar estruturalmente nem a imprensa nem o funcionamento da internet como a conhecemos hoje. É um desafio, que é preciso enfrentar, mas que não se irá resolver com o direito ao esquecimento. É uma categoria ruim para a solução desse desafio.

O Judiciário é o palco inevitável para decidir sobre o direito ao esquecimento?

Não, eu acredito que deva existir uma legislação que proteja a liberdade de expressão. E que estabeleça em quais casos excepcionais, com quais argumentos demonstrados, um juiz pode tomar a decisão de desindexar uma informação. Isso deveria estar numa lei precisa, que proteja a imprensa e os intermediários. E que estabeleça os casos limites, em que todos estaríamos de acordo que certa informação que não pode circular.

Por exemplo, informação que afete a intimidade, a privacidade, a vida de crianças. Esse é um tipo de informação em torno da qual, creio, há um acordo pacífico, em nível internacional, de que ele pode ser desindexado. Essas diretrizes deveriam estar numa lei, para que o Poder Judiciário atue de acordo. Não se pode aceitar que um juiz esteja mais ou menos identificado com a liberdade de expressão ou entenda mais ou menos o valor da liberdade de expressão numa democracia.

Como eu disse, o direito ao esquecimento é tão ambíguo que os juízes podem fazer qualquer coisa. Ele não existe na lei brasileira, ele não existe na Constituição brasileira, como não existe na lei e na Constituição de nenhum país de nossa região. Essa categoria não existe. E seu uso é perigosíssimo, justamente porque não existe e não foi adequadamente delimitado. A ideia do direito ao esquecimento como uma cláusula aberta legitima juízes a ordenar que qualquer informação seja apagada.

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EVENTO

O Grupo Abril e o Google Brasil realizam nesta terça-feira (9), em Brasília, um fórum sobre o direito ao esquecimento. A abertura será de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal.

A advogada Fabiana Siviero, do Google, que fará a mediação do primeiro painel sobre liberdade de expressão nas eleições, diz que a parceria com a Abril para o evento se deu após uma ordem judicial de remoção de conteúdo, dada ao Google, de um conteúdo da Abril.

"Aí começamos a conversar como isso é nocivo para o direito à informação", diz ela. "Você acaba tendo formas de burlar até a liberdade de imprensa. Abril e Google começaram a ver que havia vários pontos em comum."

Entre os participantes estarão os ministros Henrique Neves, do Tribunal Superior Eleitoral, e Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça, e o humorista Antonio Tabet, do Porta dos Fundos.

Um segundo evento será realizado no dia 26, em São Paulo, com abertura do ministro do Supremo Luís Roberto Barroso.

'MUITAS AÇÕES'

Siviero diz que o fórum não tem relação com o processo que chegou ao Supremo, sobre um programa da TV Globo. O caso não envolve internet ou o chamado direito ao esquecimento, embora, segundo ela, possa ocasionar um pronunciamento dos ministros sobre o tema.

"Nós, aqui no Google, entendemos que esse não é o caso que vai resolver essa questão", diz. "A gente acha que ainda há muito a ser debatido, em relação a informações que estão em sites, em mecanismos de busca. A questão é essencialmente diferente da que está sendo tratada no Supremo."

Em outras instâncias, segundo a advogada, a questão está adiantada, em outras ações. "No Superior Tribunal de Justiça já há vários casos julgados, em que o STJ reconheceu que não existe o direito ao esquecimento, em relação aos mecanismos de busca."

Siviero afirma que o Google tem observado "muitas ações iniciadas por pessoas públicas, celebridades, políticos, juízes, pedindo o direito ao esquecimento, a remoção de informações do buscador, por alguma coisa que fizeram no passado e que elas não gostam mais".

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FÓRUM ABRIL-GOOGLE DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Quando ter. (9), a partir das 9h

Onde auditório do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) - SGAS Quadra 607, Módulo 49, Via L2 Sul, Brasília (DF)

Quanto inscrições gratuitas pelo site

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Direito ao esquecimento

O que é
Conceito jurídico segundo o qual indivíduos teriam direito de suprimir registros sobre seu passado

Caso que está sendo debatido
1958 - Jovem Aída Curi é assassinada no Rio
2004 - Crime é reproduzido no programa Linha Direta, da TV Globo, e irmãos entram na Justiça
2013 - Conselho da Justiça Federal divulga interpretação sobre o tema: "A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento"
2014 - Caso Aída Curi chega ao STF
jul.2016 - Procuradoria Geral da República pede que pedido dos irmãos seja rejeitado

Antecedentes
> Em 2014, um espanhol obteve vitória na Corte de Justiça da União Europeia após pedir a remoção de links no Google para o anúncio de uma casa que ele perdeu por dívidas
> A corte determinou que o Google apagasse dos resultados de sua busca dados "inadequados, irrelevantes ou não mais relevantes", quando solicitado por um cidadão

Argumentos a favor
> Direito ao esquecimento garante a proteção da dignidade
> Trazer à tona fatos do passado pode reabrir antigas feridas

Argumentos contra
> Remoção restringe a liberdade de informação
> Não se pode apagar a história

MEMÓRIA EM DEBATE - Motivos dos pedidos no Brasil, por total de páginas


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