Folha de S. Paulo


Com falta de estrutura, presos de SP morrem doentes e fora de hospitais

"Quando eu vi meu filho morto, não dava para reconhecer. Parecia uma caveira", diz a dona de casa Maria Lourdes da Silva, 60. Aos 25 anos, Alessandro da Silva tinha bom estado de saúde quando foi preso por tentativa de furto, em 2010. Foi diagnosticado com tuberculose na prisão, sua saúde se deteriorou e ele esperou seis dias pela transferência ao hospital na fase final da doença.

Carlos Roberto de Souza/Divulgação
Maria de Lourdes da Silva, 60, com a foto do filho Alessandro da Silva, 25, que morreu em 2010 por falta de atendimento medico em uma prisao. Foto: Carlos Roberto de Souza/Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Maria da Silva, 60, com a foto do filho morto em 2010 após diagnóstico de tuberculose na prisão

Em abril deste ano, o Tribunal de Justiça de SP concluiu que houve negligência e condenou o Estado a pagar indenização de R$ 100 mil à família por danos morais. Organizações que acompanham a situação dos detentos afirmam que muitas mortes ocorrem em circunstâncias parecidas –em que a omissão do poder público pode ser mais grave que a doença.

Alessandro da Silva ainda foi internado, embora já em situação crítica. Outros não chegam nem ao hospital. No ano passado, houve 422 mortes sem relação com violência dentro do sistema prisional paulista, administrado pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB). Desses casos, 42 óbitos ocorreram em enfermarias (29) ou na tentativa de transferência (13) –fora dos hospitais, portanto.

Do lado de dentro das prisões, há relatos de falta de equipamentos, enfermarias precárias e deficit de médicos. Em todo o Estado, há 120 médicos contratados, para um total de 164 unidades. Considerando a população prisional de 228.880 pessoas, cada profissional teria 1.900 presos sob sua tutela.

Segundo o governo, parte da demanda é suprida por médicos contratados pelas prefeituras e que atendem 50 unidades. Mesmo assim, há um deficit de ao menos 250 médicos, de acordo com vagas anunciadas em concursos recentes e nunca preenchidas.

DOENÇAS

A falta de assistência se dá em um sistema prisional superlotado, em que há 94 mil detentos a mais do que a capacidade. A situação é combustível para a proliferação de doenças transmissíveis como a tuberculose, que tem tendência de alta. Em 2015, foram 3.157 casos, contra 2.838 (2014) e 2.543 (2013).

"Há mortes por casos de saúde bem básicos", afirma Patrick Lemos Cacicedo, coordenador do núcleo de situação carcerária da Defensoria Pública. "Faltam médicos, e muitos atendimentos são feitos por profissionais que não são autorizados a medicar. Em situação de urgência, não há escolta para levar para estabelecimento de saúde adequado", diz.

No caso de Alessandro da Silva, que estava preso no CDP de Caiuá (a 627 km de SP), familiares creditam a morte a uma série de omissões. "O Alessandro passou um tempo no hospital e melhorou. Aí a secretaria pediu para ele retornar à prisão, onde ele se alimentava mal, tomava banho frio, ficou largado", diz o advogado da família, Romulo Arariboia Faraco.

"Quando ele definhou, já não conseguia se alimentar, usava fralda, aí pediram com urgência a transferência para o hospital de novo. Demorou uma semana, já era tarde."

SAÚDE NAS PRISÕES - Superlotados, presídios paulistas sofrem com falta de estrutura médica

Outro problema relatado é a interrupção de tratamentos de doenças graves, segundo grupos que auxiliam presos, como o ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania).

"Quem tem HIV pode ter que interromper tratamento até passar por um infectologista. Há casos de pessoas que ficam até quatro meses sem os remédios, e a queda da imunidade é muito perigosa", afirma Isabela Cunha, do ITTC, que atua num programa que dá assistência a presas estrangeiras.

ATENDIMENTO

A Secretaria da Administração Penitenciária do governo Geraldo Alckmin (PSDB) afirma que os presos têm atendimento médico garantido nas unidades e que a mortalidade nas prisões caiu de 450 casos, em 2014, para 422, no ano passado.

Como a contabilização das mortes passou a ser feita a partir de 2014, porém, não é possível comparar os últimos anos com a série histórica. A pasta diz que busca casos de tuberculose assim que os presos chegam às unidades. "Esse trabalho resultou no aumento do número de diagnósticos e tratamentos e consequente redução do número de óbitos dos internos."

"Os casos mais complexos são encaminhados à rede pública de saúde e/ou ao Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário da Fundação ABC, na capital", afirma a pasta. O governo diz que concursos para médicos vêm sendo abertos desde 2012, mas admite que "um número muito baixo" passa a atuar.

"Salientamos que a remuneração ofertada através de concurso público para o cargo de médico em unidades prisionais é praticamente a mesma ou até mesmo superior àquela para preenchimento do mesmo cargo em hospitais estaduais."

A gestão diz ainda que uma alternativa à falta de equipes é a parceria adotada com municípios que assumem a atenção básica nos ambulatórios das unidades prisionais, sendo remunerados pelo Estado. Há 50 presídios nesse sistema.

Casos de tuberculose nos presídios - Hipertensão, diabetes e HIV também são frequentes

DOENÇAS CRÔNICAS

Designado pela gestão Alckmin para falar com a Folha, o médico infectologista Alexandre Cesar de Araújo diz que, na unidade em que atua, o CDP de Pinheiros (zona oeste de SP), os presos com doenças crônicas são atendidos até o dia seguinte em que chegam na unidade e recebem medicação rapidamente.

O plantão dele na prisão é de segunda a quinta, das 7h30 às 12h30. Segundo ele, a equipe formada por dentista, auxiliar de enfermagem e enfermeiro atende 70 presos ao dia. "O atendimento mais frequente é de pessoas com doenças crônicas, como diabetes."

Boa parte dos detentos do Estado não conta com estrutura semelhante na prisão. Isso se deve, em parte, à baixa adesão dos médicos a esse tipo de vaga. O próximo concurso para médicos da secretaria estadual tem 252 vagas, com salários que variam entre R$ 5.440 e R$ 7.450.

A julgar pelos últimos concursos, há poucas chances de que os postos sejam ocupados. Em um edital aberto em 2012 para 308 médicos, por exemplo, apenas dez tomaram posse. "O que eu vejo é que é um preconceito. Por falta de conhecimento de como é o sistema prisional, as pessoas se afastam um pouco, há resistência [da categoria]", afirma Araújo.

A falta de medicamentos é outra queixa. Segundo Francisco Crozera, da Pastoral Carcerária, uma reclamação frequente entre os presos é de que os únicos remédios disponíveis são os analgésicos, como dipirona e paracetamol.

INTERNAÇÃO

Sobre a morte de Alessandro da Silva, a secretaria afirma que ele apresentou quadro de inapetência, tosse e febre, sendo transferido para a enfermaria. Posteriormente, foi encaminhado à Santa Casa de Presidente Epitácio.

"Com a alta médica, o detento retornou à unidade, porém seu quadro clínico era de desnutrição, úlceras de pressão, falta de comunicação e incapacidade de locomoção, o que motivou sua internação no pavilhão de saúde do CDP", afirma a nota.

Segundo o processo judicial, o diretor da unidade pediu a remoção de Silva para um hospital no dia 4 de junho. No dia 8, ele continuava no local e o médico da unidade classificou o quadro dele como de emergência. Mesmo assim, a remoção ocorreu só em 14 de junho, para o Centro Hospitalar do Mandaqui (zona norte de SP). No dia 17, ele morreu. "De acordo com o atestado de óbito, o preso faleceu por tuberculose miliar, sendo o único registro desse tipo de tuberculose naquele CDP", diz a pasta.


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