Folha de S. Paulo


Sérgio Henrique Ferreira (1934-2016)

Mortes: Premiado cientista descobridor de remédios

Matuiti Mayezo - 7.jul.1995/Folhapress
Sérgio Henrique Ferreira (1934-2016)
Sérgio Henrique Ferreira (1934-2016)

Aos 26 anos, recém-formado em medicina pela USP, em 1960, e ganhando muito pouco, Sérgio Henrique Ferreira pretendia se casar com Clotilde. Mas familiares da jovem receavam que ele queria a união para ser sustentado por ela, que já tinha dois bons empregos, o de professora de filosofia no Colégio Sion e o de orientadora pedagógica no Colégio Oswaldo Cruz, em São Paulo.

A mãe da jovem logo entendeu que seu futuro genro, que sua filha conhecera em um congresso da UEE (União Estadual de Estudantes), não era do tipo que se aproveitava de moças consideradas "bons partidos", como o eram as professoras do ensino básico naqueles tempos. E o casamento aconteceu em 1961.

Nascido em Franca (SP) em 4 de outubro de 1934, Sérgio teve entre exílios e retornos ao país uma das carreiras mais brilhantes da pesquisa médica e farmacológica brasileira. E sempre ao lado de Clotilde, que se tornou uma importante referência nacional em estudos de psicologia da educação e do desenvolvimento humano.

Na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, onde havia se doutorado em farmacologia em 1964, o jovem se tornou mundialmente conhecido já no ano seguinte ao publicar seu estudo que identificou no veneno da jararaca a substância ativadora do efeito redutor na pressão arterial.

A substância identificada deu mais eficiência à bradicinina, uma enzima obtida da combinação do veneno da jararaca com plasma em 1948 por pesquisadores liderados por Maurício Rocha e Silva (1910-1983), que fora seu orientador de doutorado.

O trabalho de Sérgio Ferreira sobre a síntese do BPF (fator de potenciação da bradicinina, na sigla em inglês) proporcionou a diversas indústrias farmacêuticas desenvolver os primeiros medicamentos de uso oral empregados em larga escala no tratamento da hipertensão arterial, os chamados inibidores da conversão da angiotensina, entre eles o captopril.

EXÍLIO

Pela quantidade expressiva de artigos científicos publicados e principalmente pelas numerosas citações a seus trabalhos por outros pesquisadores, além de dezenas de prêmios nacionais e internacionais que recebeu, Sérgio, com seu currículo, pode dar a impressão de ter passado toda a sua carreira trancado em laboratórios.

Mas não foi bem assim. Além de participarem intensamente do dia a dia da universidade e também dos meios culturais entre São Paulo e a região de Ribeirão Preto, ele e "Tilde" –como chamava sua mulher–, e apesar de não terem vinculação partidária ou a organizações políticas, sempre atuaram em discussões públicas e mobilizações sociais mesmo antes do golpe militar de abril de 1964.

Por essa atuação e também por ajudarem e darem abrigo a pessoas perseguidas pelos órgãos de segurança, não demorou muito para os dois serem rotulados como subversivos na universidade e fora dela.

No mesmo ano em que Sérgio publicou seu estudo sobre o BFP, ele e Clotilde pediram licença de seus cargos na USP e seguiram com bolsas de estudo para Londres com seus filhos Fernando, então com três anos, e Marcos, de poucos meses. A viagem era, na verdade, um exílio voluntário do casal, que estava sendo constantemente vigiado.

Na Inglaterra, enquanto sua mulher, grávida, cursava o doutorado e preparava sua tese em psicologia na Universidade de Londres, Sérgio fez seu pós-doutorado no Royal College of Surgeons, também na capital britânica, sob a orientação de John Robert Vane (1927-2004), um dos ganhadores do Nobel de Medicina de 1982.

Enquanto participava dos trabalhos que deram a Vane o Nobel pela descoberta dos processos bioquímicos de drogas analgésicas, entre elas as aspirinas, em menos de dois anos o jovem brasileiro publicou nessa mesma área sete importantes artigos que reforçaram sua projeção internacional já iniciada com a pesquisa sobre o BPF.

Em 1967, acreditando que a situação política no Brasil estava se tornando menos sombria, o casal retornou com seus filhos, que já eram três com a chegada da caçula Beatriz. Mas não demorou muito para eles perceberem que as perspectivas para o país e particularmente para eles não eram nada boas.

Sérgio conseguiu retomar suas atividades na USP de Ribeirão Preto, mas Clotilde havia perdido seu cargo, pois sua licença não havia sido renovada pela universidade. A situação dos dois ficou muito mais arriscada depois de o governo baixar o AI-5, em 1968, suspendendo os direitos e garantias individuais constitucionais. Com isso, eles decidiram retornar a Londres.

Sérgio partiu primeiro no início de 1970, para organizar a nova casa da família, enquanto sua mulher ficou em São Paulo hospedada pelo casal de físicos Amélia Império Hamburger (1932-2011) e Ernst Wolfgang Hamburger. Ambos eram professores da USP, também atuantes politicamente, e foram presos pouco depois de Clotilde e seus filhos seguirem para Londres.

Nesse segundo exílio, no Reino Unido, Sérgio voltou a pesquisar com Vane e, de 1971 a 1975, trabalhou como diretor de pesquisa da indústria farmacêutica Wellcome.

Além de diversos trabalhos sobre os processos bioquímicos da dor e da inflamação em parceria com outros pesquisadores, ele e Vane editaram livros que se tornaram referências nessas áreas, como "Inflammation" (1978) e "Anti-inflammatory Drugs" (1979), pela editora científica alemã Springer.

PRÊMIOS

Em 1975, Sérgio e Clotilde retornaram definitivamente ao Brasil. Um dos motivos principais da volta foi aproximar a convivência dos filhos com os demais familiares em São Paulo e com o país.

Nesse retorno, Sérgio teve atuação decisiva no fortalecimento de pesquisas na USP de Ribeirão Preto, que ampliaram o conhecimento sobre o mecanismo da ação analgésica de drogas, como a dipirona no sistema nervoso periférico, e também propuseram o desenvolvimento de medicamentos opiáceos analgésicos.

Reconhecidos internacionalmente, os estudos dele e de seus colaboradores consolidaram com a imagem de centro de excelência o prestígio do núcleo criado por Maurício Rocha e Silva. Sérgio se aposentou da USP em 1978, mas até os últimos dias mantinha sua colaboração com o grupo.

Ele e seus colegas fundaram em 1981 o periódico "Brazilian Journal of Medical and Biological Research", que se tornou uma das primeiras revistas acadêmicas brasileiras indexadas pelo ISI (Instituto de Informação Científica), que deu origem à atual base de dados Web of Science.

Em 1983, em homenagem aos seus trabalhos sobre o BPF, a Associação Americana do Coração, dos Estados Unidos, deu a ele o Prêmio Ciba de Hipertensão. Também pelo reconhecimento às suas contribuições científicas, em 1990, a Sociedade Norueguesa de Hipertensão criou a premiação "Ferreira Award" para pesquisadores nessa mesma área.

Em 1990, Sérgio foi premiado também pela Sociedade Interamericana de Farmacologia Clínica e Terapêutica e pela Academia de Ciências do Terceiro Mundo. Esses foram apenas as primeiras de dezenas de premiações e convites para instituições de destaque, entre eles a Ordem Nacional do Mérito Científico, do Brasil, e os títulos de professor emérito da USP e de membro da ABC (Academia Brasileira de Ciências) e da NSF (Fundação Nacional da Ciência dos Estados Unidos).

O impacto e a magnitude da produção intelectual do bioquímico paulista chegaram ao conhecimento do público não especializado no final dos anos 1990, quando começaram a ser divulgados índices de produtividade. No Ranking da Ciência da Folha de 1999, Sérgio apareceu em primeiro lugar em bioquímica e em todas as áreas do levantamento, com 6.518 citações de seus trabalhos por estudos de outros pesquisadores.

Sérgio também atuou nas discussões e mobilizações em torno das políticas públicas do Brasil nas áreas de educação superior e de ciência e tecnologia. Em 1995, ele foi eleito presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).

Nos quatro anos em que esteve à frente da entidade, Sérgio manteve acesas as questões políticas que sempre a marcaram e também reforçou o debate em torno da necessidade de fortalecer as ações para a melhoria da qualidade da produção científica brasileira e de promover a integração da pesquisa com a indústria.

"É preciso saber se os cientistas estão produzindo. O orçamento das universidades deve ser estabelecido em função do mérito e da produtividade", disse ele à Folha em 1999. "Não adianta nada alguém ser produtivo [do modo como a situação está], pois vai ser tratado do mesmo jeito que aqueles que não são."

Morreu dia 17, aos 81 anos, após uma insuficiência respiratória. Deixa a mulher, Clotilde, três filhos e cinco netos.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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