Folha de S. Paulo


Brincalhão, ciclista atropelado na Imigrantes tinha 'mulher imaginária'

Dorgival não era casado, mas tinha a Jurema. A personagem, inventada pelo vigia noturno, existia apenas nas suas piadas. O que não é pouca coisa, já que Dorgival fazia brincadeiras com frequência.

Quando recebia alguma visita em casa costumava dizer: "A Jurema saiu, quando ela chegar faz um café para vocês". Todos riam e ele fazia o café, conta o irmão, Adimilson Francisco Sousa, 52. "Ele sempre contava histórias e a gente ria muito", diz.

O "marido da Jurema", Dorgival Francisco Sousa, 59, morreu atropelado por um carro quando pedalava para o trabalho por volta das 18h de domingo (3), no acostamento da rodovia dos Imigrantes. O impacto decepou seu braço na altura do ombro.

O motorista fugiu, e Dorgival morreu na hora. Seu braço foi encontrado a mais de 1,5 km de distância, na avenida Dr. Ulysses Guimarães, em Diadema (Grande SP). O delegado suspeita que o membro do vigia tenha ficado preso no carro e que o motorista só parou para jogá-lo fora.

Segundo amigos de Dorgival, o casamento fictício com Jurema era antigo. "Ele fazia piadinha com isso desde que eu era criança", lembra o vendedor Rodrigo Carvalho, 25.

Dorgival foi inquilino na casa dos fundos da família Carvalho por 28 anos. Era praticamente um tio, diz Rodrigo. "Ele estava sempre dando risada, alegre, agora é só tristeza", lamenta.

"Ele morreu da pior forma possível. O que a gente espera agora é justiça", afirma Rodrigo. A polícia ainda trabalha na identificação do carro. Vídeos de câmeras de segurança mostram um modelo Vectra, de cor cinza ou prata, primeiro trafegando pelo acostamento e, depois, danificado do lado direito.

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Dorgival foi sepultado nesta terça-feira (5) no cemitério municipal de Diadema. O caixão foi coberto com camisas do Grêmio, time do vigia.

No dia do acidente, o vigilante noturno estava a caminho do trabalho em uma empresa de transporte. Eram cerca de 12 km diários de bicicleta indo e vindo do turno das 18h às 6h.

Apesar das brincadeiras com a Jurema, Dorgival é descrito como uma pessoa séria e responsável. Segundo a família, era cauteloso e andava de capacete. De acordo com seu supervisor, o vigia nunca chegou atrasado ou faltou, em 13 anos no emprego.

Dorgival e seus 15 irmãos começaram a trabalhar cedo, na roça dos pais em Nossa Senhora da Glória (SE). Moravam em uma casa de taipa, plantavam milho e feijão para subsistência e tinham uns poucos animais: gado, porco e carneiros. Os filhos acordavam ainda de noite e trabalhavam até a hora do almoço, quando iam para a escola.

A vida era sofrida, mas ninguém passava fome, diz Adimilson. E no fim de semana as crianças nadavam no açude. Dorgival estudou só até a 3ª série, mas tinha uma caligrafia invejável, afirma o irmão. "Era caprichoso em tudo", diz o primo Givaldo Lima, 58.

Os dois moraram juntos nos primeiros anos em São Paulo, quando eram adolescentes. Na cidade, Dorgival conseguiu uma vaga em uma fábrica de tecidos. Ganhava cerca de R$ 2.000 por mês e, quando a seca castigava a sua cidade natal, enviava dinheiro ao pai. O suficiente para que o gado não morresse.

"Ele gostava de trabalhar, era do trabalho para casa, toda a vida dele", diz Adimilson. Só passeava quando ia a Aparecida, no interior de São Paulo, afirma a irmã, Maria José Sousa, 64: "Ele já foi de bicicleta, era devoto."

Para a irmã, Dorgival era "tão direito que eu até achava que era demais", diz. Maria insistia que o irmão arrumasse uma mulher, mas ele respondia que não era capaz de sustentar uma família. Já Adimilson acredita que o vigia não se casou por ser "sistemático".

"Ele estava acostumado com a vida dele, uma mulher ia mudar tudo", diz. Os primos brincavam que não precisava casar: era tão organizado que até as panelas da casa brilhavam. "Rapaz, vai ser difícil você encontrar uma mulher", diziam. Por via das dúvidas, Dorgival continuou com a Jurema.


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