Folha de S. Paulo


Poetas quebram a rotina nos vagões da CPTM

Marlene Bergamo/Folhapress
Grupo Filhos de Ururai, faz poesia em trem da CPTM em São Paulo
Grupo Filhos de Ururai, faz poesia em trem da CPTM em São Paulo

Pelo menos uma vez por mês, Lucas Afonso, Andrio Candido e Rafael Carnevalli entram nos vagões dos trens da CPTM sem saber o que vai acontecer.

Os três fazem parte do grupo de intervenções poéticas Filhos de Ururaí, que busca quebrar a rotina de quem circula pelas estações da zona leste declamando poesias.

"Já recebemos vários tipos de reações. Da última vez, na estação Lapa, o vagão aplaudiu. Em dois anos foi a primeira vez", disse Carnevalli.

A reportagem da Folha acompanhou uma apresentação do trio durante o trajeto no sentido Tatuapé-São Miguel Paulista às 17h de uma quinta-feira.

O vagão estava cheio, mas não lotado quando o grupo entrou. O horário marcado foi estratégico: se fosse mais tarde haveria tanta gente que eles não teriam espaço para a performance. Após alguns momentos de hesitação e de uma leve tensão, o grupo combinou o roteiro e a ordem de cada fala.

"Senhoras e senhores, não queremos vender nada, mas trocar", anunciou Candido, em tom teatral, provocando surpresa em muitos passageiros.

Em seguida o trio começou a bater palmas e cantar em conjunto: "Ecoa o canto dos povos das terras daqui/Ecoa o canto dos filhos de Ururaí". Afonso convidou a todos a se aproximarem e participarem: "Quem tiver vontade, pode chegar!". Os passageiros, contudo, ficaram no mesmo lugar.

Muitas pessoas os ignoraram, tentando apenas cumprir a sua rotina diária. Alguns viraram o rosto para o lado, outros olharam para o celular. Ao fundo, do lado oposto ao trio, alguém riu alto para atrapalhar a apresentação. Algum gaiato gritou: "Vai, Corinthians!".

Muitos, porém, paravam e prestaram atenção. Quando Afonso começou a declamar depois de Carnevalli, descrevendo, em rimas, a situação dos trens lotados e buscando imagens fortes como "será a vida um carro bomba que eu empurro na contramão?".

Em um momento, depois de falar sobre os abusos dos patrões, em uma sequência de rimas com 'or', o trio cantou ao mesmo tempo "aqui só tem trabalhador". A plateia informal reagiu na hora com uma "oooooohhh", como para mostrar que se identificavam com as palavras dos poetas.

"Eles têm letras bem boladas, falam umas verdades. Cantam a nossa realidade do dia a dia", disse porteira Cíntia Ribeiro, 36. Ela iria descer na estação Comendador Ermelino, onde acaba o trajeto de 1h30 do trabalho até em casa.

A caminho da estação USP Leste, o operador de telemarketing Matheus Fernandes, 19, disse que gostou da apresentação e acha que o grupo faz um trabalho de conscientização das pessoas. "Se não fossem eles, eu nunca saberia que Ururaí é São Miguel."

O poeta Carnevalli lembrou como o grupo começou: "Nós já tínhamos o costume de recitar poesia nos trens. Daí gravamos uma vez e viralizou na internet. Daí formamos o coletivo. O Lucas entrou na segunda gravação",

Cada integrante tem uma característica distinta. Afonso é mais cronista e político, ligado à tradição dos MCs. Candido, que também é ator, escreve mais sobre temas sociais, e Carnevalli, que organiza saraus de poesia em São Miguel, é o mais lírico.

A página do grupo no Facebook tem quase 12 mil fãs. Para divulgar o trabalho, os Filhos de Ururaí gravam as ações nos trens e disponibilizam os vídeos na internet.

Embora tenham uma cultura mais ligada à oralidade, o trio agora tem planos de compilar as poesias para publicar um livro. A próxima apresentação nos trens não tem data marcada, mas eles estão trabalhando em poemas inéditos.

Apesar de não ter como prever a reação do público, o grupo sabe o que quer provocar, segundo Carnevalli. "Muitos podem se incomodar, mas já transformamos a mente de muitas pessoas. Existe poder na poesia que vem do trem."


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