Folha de S. Paulo


Após 32 anos, abrigo no RS encaminha primeira criança deficiente para casal

Casa do Menino Jesus de Praga
Equipe de atendimento e crianças da Casa do Menino Jesus de Praga em Porto Alegre
Equipe de atendimento e crianças da Casa do Menino Jesus de Praga em Porto Alegre

Sem escutar o próprio choro ou a voz da mãe, João foi abandonado no hospital assim que nasceu. O bebê surdo e com lesões cerebrais ficou internado durante sete meses, enquanto era atendido por funcionários, em um hospital de Novo Hamburgo, na região metropolitana de Porto Alegre, em 2012.

Usuária de crack, a mãe biológica forneceu os dados pessoais errados e fugiu. "Foi um carinho imediato e muito apego", conta Lourdes, 41, técnica de enfermagem que cuidou da criança.

Quatro anos depois, ela e o marido, o mecânico Carlos, 51, conseguiram a guarda provisória -os nomes são fictícios para preservar a identidade da criança.

O casal foi buscar João na manhã de uma sexta-feira de maio deste ano na CMJP (Casa do Menino Jesus de Praga), entidade filantrópica que abriga crianças deficientes na capital gaúcha. Levou de lá roupas e brinquedos do menino.

Os funcionários da casa fizeram festa com dupla comemoração: foi a despedida de João e o primeiro processo de adoção em 32 anos de existência do abrigo, por onde já passaram 164 crianças.

"A emoção foi grande. Ele era filho de todo mundo", conta Marco Antonio Perottoni, 66, presidente da CMJP.

As crianças acolhidas na entidade são encaminhadas pela Justiça, geralmente após abandono e maus-tratos. Todas têm deficiências neurológicas e não conseguem caminhar. A maioria se alimenta apenas através de sonda.

Nesses 32 anos, as crianças que ficaram no abrigo acabaram saindo de lá com um final nada feliz. "Infelizmente, a saída é por óbito", lamenta Perottoni. Por isso, as vagas são raras e novos leitos são disponibilizados quando uma criança morre. O caso da adoção de João é uma exceção festejada.

O garoto deve continuar aprendendo língua brasileira de sinais para se comunicar. À Folha, Lourdes conta que João está adaptado ao novo lar. "A casa está cheia, é tudo de bom. É alegria o tempo todo", comemora.

Casa do Menino Jesus de Praga
Criança é atendida na Casa do Menino Jesus de Praga em Porto Alegre
Criança é atendida na Casa do Menino Jesus de Praga em Porto Alegre

Ela tem duas filhas adultas e um neto de dois anos, que já está apegado ao novo integrante da família. O casal fez dois pedidos: de adoção e de guarda provisória. Foi atendido no segundo.

"O juiz deu a eles um papel que dá o direito de exercer todas as obrigações de pais, como matricular em escola e fazer acompanhamento de saúde. Eles podem ter laços da vida civil normal", diz o advogado Jamil Abdo, 52, especialista em direito de família.

O processo de João ocorre num momento em que as adoções estão em alta no país. Dados do Cadastro Nacional de Adoção -administrado pela Corregedoria Nacional de Justiça- mostram que os registros de crianças com deficiência mental subiram de 8, em 2013, para 25, em 2015.

O número de adoções de crianças com deficiências físicas também subiu: de 6 para 18, no mesmo período.

Desde 2014 está em vigor uma lei que dá prioridade para adoção de crianças com deficiência ou doenças crônicas.

No entanto, dos 35.846 cadastrados para adotar, apenas 2,5% aceitam uma criança com deficiência mental. Outros 5,9% aceitam adotar uma criança com deficiência física. Atualmente existem 6.600 crianças cadastradas para adoção. Destas, 589 têm deficiências mentais e 253 têm deficiências físicas.

'40 FILHOS'

Na CMJP, o presidente e o gerente têm a guarda de todas as crianças. "Temos 40 filhos", brinca Perottoni. A entidade funciona 24 horas por dia.

São 54 funcionários e cem voluntários. O custo do abrigo é de cerca de R$ 260 mil mensais. Em março, a casa registrou um déficit de R$ 40 mil. Cerca de 20% da verba vem do poder público, o restante é fruto de doações e vendas do brechó da instituição.

Uma nova sede, para ampliar as vagas, está em construção. As doações podem ser feitas de qualquer lugar do país no site da entidade (casadomenino.org.br).

As crianças, porém, não necessitam apenas de cuidados médicos. "Precisam de carinho e amor, não é só remédio. O resultado faz acreditar que tem solução", diz Perottoni


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