Folha de S. Paulo


análise

Guetos e antiguetos: o regime da marginalidade urbana no século 21

Relegar (do inglês da Idade Média tardia "relegaten", que significa mandar embora, banir) significa atribuir a um indivíduo, a uma população ou a uma categoria uma posição, condição ou localização obscura ou inferior.

Na cidade pós-industrial, a relegação assume a forma de uma transferência real ou imaginária a formações socioespaciais distintas, referidas de forma variada e vaga como "cidades internas", "guetos", "enclaves", "áreas onde não se deve ir", "bairros-problema" ou simplesmente "bairros difíceis". Como devemos caracterizar e diferenciar esses espaços, o que determina sua trajetória (nascimento, crescimento, decadência e morte), de onde vem a intensa mancha simbólica a eles ligadas na virada do século, e que constelações de classe, etnicidade e Estado eles materializam e significam? São essas as questões que procurei responder no meu livro "Urban Outcats"i mediante uma comparação metódica das trajetórias do gueto negro norte-americano e das periferias da classe trabalhadora europeia na era da supremacia neoliberal. Neste texto, revisito essa sociologia da marginalidade avançada nos dois continentes, trazendo à tona suas lições mais gerais de modo que possamos compreender o intrincado nexo entre o espaço simbólico, o social e o físico na metrópole polarizada.

O livro "Urban Outcasts" nasceu da confluência de dois choques, o primeiro pessoal e o segundo político. O choque pessoal foi a descoberta em primeira mão do gueto negro norte-americano - ou do que restava dele -, quando me mudei para Chicago e vivi durante seis anos em South Side, nos limites da cidade. Vindo da França, fiquei perplexo diante da intensidade da desolação urbana, da segregação racial, da privação social e da violência de rua, concentradas nesta "terra non grata" que era temida por todos, evitada e denegrida por pessoas de fora, incluindo muitos estudiosos.

O choque político foi a difusão de um pânico moral a respeito da guetização na França e em boa parte da Europa Ocidental. Nos anos 1990, a mídia, os políticos e mesmo alguns pesquisadores chegaram a acreditar que os bairros de trabalhadores na periferia das cidades europeias estavam se tornando guetos no padrão dos Estados Unidos. E assim o debate público e a política de Estado foram reorientados para a luta contra o crescimento desses chamados guetos, baseados na premissa de que a pobreza urbana estava sendo americanizada, isto é, marcada pelo aprofundamento da divisão étnica, pelo crescimento da segregação e pela criminalidade galopante.

Coloquem esses dois choques juntos e teremos a questão que animou uma década de pesquisa: os guetos norte-americanos e os bairros da Europa das classes desfavorecidas com grande concentração de imigrantes estão convergindo? Se não for este o caso, o que está acontecendo com eles? E o que está impulsionando sua transformação? Para responder a essas questões, reuni dados estatísticos e realizei uma observação de campo numa área degradada do "cinturão negro" de Chicago e num subúrbio em processo de desindustrialização do "cinturão vermelho" de Paris, localizado entre o aeroporto de Roissy e a capital. Também reconstruí suas trajetórias históricas, porque não se pode entender o que aconteceu a esses bairros decadentes nos anos 1990 sem considerar o século 20 em sua integridade, marcado pelo florescimento e depois pelo desaparecimento do industrialismo fordista e do Estado do bem-estar social keynesiano.

GUETO, HIPERGUETO E ANTIGUETO

Do lado americano, eu mostro que, após os motins da década de 1960, o gueto negro implodiu ou entrou em colapso, se se preferir, devido à concomitante retração da economia de mercado e ao encolhimento do Estado social. O resultado foi uma nova forma urbana que eu chamo de hipergueto, caracterizado pela dupla relegação com base na raça e na classe e reforçado pela política de Estado de retirada das políticas de bem-estar e pelo abandono urbano. Assim, quando nos referimos ao gueto americano, devemos obrigatoriamente historicizá-lo e não confundir o gueto comunal dos anos 1950 com seu sucessor "fin-de-siècle".

O gueto comunal era um mundo paralelo, uma cidade negra dentro da branca, como os sociólogos afro-americanos St Clair Drake e Horace Cayton afirmam em sua obra principal "Black Metropolis".ii Ele servia como um reservatório de força de trabalho não qualificada para as fábricas e sua densa rede de organizações funcionava como um amortecedor contra a dominação branca.iii Com a desindustrialização e a transição para o capital financeiro, o hipergueto não tem nenhuma função econômica e é despojado de organizações comunitárias, que foram substituídas por instituições públicas de controle social. Ele é um instrumento de uma exclusão nua e crua, um mero receptáculo das frações estigmatizadas e supérfluas do proletariado negro: os desempregados, os beneficiários das políticas sociais, os criminosos e os participantes da cada vez mais ativa economia informal.

No lado francês, a percepção da mídia e da política dominantes acaba se revelando completamente equivocada: os bairros das classes desfavorecidas foram submetidos a um processo de pauperização e gradual decomposição que os afasta do padrão do gueto. Um gueto é um enclave etnicamente homogêneo que contém todos os membros de uma categoria subordinada e suas instituições, e os impede de irem para a cidade.

Hoje, os subúrbios decadentes estão muito misturados e tornaram-se, nas últimas três décadas, mais diversificados em termos de recrutamento étnico; eles geralmente comportam uma maioria de cidadãos franceses e imigrantes de duas a três dezenas de nacionalidades. A presença crescente desses migrantes pós-coloniais resulta de uma redução em sua separação espacial: eles costumavam ser barrados dos conjuntos habitacionais públicos e portanto mais segregados. E os residentes que ascendem na estrutura de classe através da escola, do mercado de trabalho ou do empreendedorismo rapidamente deixam essas áreas degradadas.

Os subúrbios do "cinturão vermelho" também perderam muitas das instituições locais ligadas ao Partido Comunista (ao qual devem a sua alcunha) que usavam para organizar a vida em torno da tríade fábrica-sindicato-bairro e davam às pessoas orgulho coletivo de sua classe e cidade. Sua heterogeneidade étnica, fronteiras porosas, densidade institucional decrescente e incapacidade para criar uma identidade cultural compartilhada fazem dessas áreas o exato oposto dos guetos: elas são os antiguetos.

Os imigrantes e seus filhos tornaram-se mais misturados nas cidades francesas, e não mais separados; seu perfil social e suas oportunidades estão se tornando mais semelhantes aos dos franceses nativos, e não mais diferentes, muito embora apresentem taxas de desemprego mais elevadas. Eles estão se tornando espacialmente mais espalhados, e não mais concentrados. E é precisamente porque agora estão mais integrados na corrente principal da vida nacional e competem por bens coletivos que são vistos como uma ameaça, e que a xenofobia despontou entre as frações nativas da classe trabalhadora, ameaçadas pela mobilidade para baixo.

O que as periferias urbanas da Europa Ocidental sofrem não é a guetização, mas a dissolução da classe trabalhadora tradicional, causada pela normalização do desemprego de massa e pela difusão de empregos instáveis e de meio-expediente, bem como pela difamação no debate público. Com efeito, o discurso da guetização participa da demonização simbólica dos bairros das classes despossuídas, que as enfraquece socialmente e as marginaliza politicamente.

"Urban Outcasts" demonstra que a tese da convergência entre a Europa e a América no modelo do gueto negro é empiricamente equivocada e confusa quanto às políticas concretas. Em seguida, o livro passa a revelar a "emergência" de um novo regime de pobreza urbana nos dois lados do Atlântico, distinto do regime do meio século precedente, ancorado no trabalho industrial estável e na rede de segurança do Estado keynesiano Essa marginalidade avançada é alimentada pela fragmentação do trabalho assalariado, pela reorientação da política de Estado da proteção social e em favor da compulsão do mercado, e pelo ressurgimento generalizado da desigualdade - ou seja, trata-se da marginalidade gerada pela revolução neoliberal. Isso significa que ela não está atrás de nós, mas na nossa frente. Ela é levada a persistir e a crescer enquanto os governos implementam políticas de desregulamentação econômica e mercadorização de bens públicos. Porém, essa nova realidade social, gerada pela escassez e pela instabilidade do trabalho e pela mudança do papel do Estado, é ofuscada pelo idioma etnicizado da imigração, da discriminação e da diversidade. Estes últimos são problemas reais, sem dúvida, mas não são a força propulsora por detrás da marginalização da periferia urbana da Europa. Pior, elas servem para esconder a nova questão social do trabalho precário e suas consequências para a formação do proletariado urbano do século 21.

ESTIGMATIZAÇÃO TERRITORIAL

Na realidade, um dos aspectos distintivos da marginalidade avançada é a disseminação do estigma espacial que desacredita as pessoas encurraladas nos bairros de relegação. Em toda sociedade avançada, uma série de distritos urbanos ou cidades tornaram-se símbolos e sinônimos nacionais para todos os males da cidade: Clichy-sous-Bois (onde em novembro de 2005 tiveram início os distúrbios) para a França, Moss Side, em Manchester, para a Inglaterra, Berlin-Neuköln para a Alemanha, South Bronx para Nova York etc. Essa crescente difamação dos bairros populares da metrópole é uma consequência direta do enfraquecimento político dos afro-americanos na cena política dos Estados Unidos e da classe trabalhadora na cena política europeia.

Quando um bairro é amplamente percebido como um "inferno" urbano, onde apenas os dejetos da sociedade tolerariam viver, quando seu nome é sinônimo de vício e violência na discussão jornalística e política, a mancha de lugar se sobrepõe aos estigmas da pobreza e da etnicidade (que significa "raça" nos Estados Unidos e origem colonial na Europa). Aqui eu me inspiro nas teorias de Erving Goffman e do meu professor Pierre Bourdieu para sublinhar como a desgraça pública que aflige essas áreas desvaloriza o senso de "self" dos seus moradores e corrói seus laços sociais. Em resposta à difamação espacial, os moradores se envolvem em estratégias de distanciamento mútuo e condenação lateral; eles se retiram para a esfera privada da família, e saem do bairro (quando têm essa opção). Essas práticas de autoproteção simbólica desencadearam uma profecia auto-realizável, mediante a qual representações negativas do lugar acabam produzindo nele uma anomia cultural e um atomismo social efetivos, que essas representações afirmam que já estavam lá.

A estigmatização territorial não apenas mina a capacidade de identificação de ação coletiva das famílias das classes pobres; ela também estimula o preconceito e a discriminação entre os de fora, tais como empregadores e burocracias públicas. Os jovens de La Courneuve, o estigmatizado "cinturão vermelho" fora de Paris que estudei, queixavam-se constantemente de que deviam omitir seus endereços quando iam procurar empregos, ter encontros com garotas ou assistir a aulas na universidade fora de sua cidade, para evitar reações negativas de medo e rejeição. Os policiais são particularmente suscetíveis a tratá-los mais severamente quando constatam que eles proveem dessa cidade contaminada, vista por muita gente como um gueto temível. O estigma territorial é um obstáculo a mais no caminho da integração socioeconômica e da participação cívica.

Vale notar que o mesmo fenômeno é observado na América Latina, entre os moradores das mal afamadas favelas do Brasil, das "poblaciones" do Chile e das "villas miserias" da Argentina. Imagino que os habitantes de Villa del Bajo Flores, de La Cava ou de Villa de Retiro em Buenos Aires saibam muito bem o que é discriminação pelo endereço. Esse estigma territorial é atribuído a esses bairros pobres da capital argentina pela mesma razão que se aglutina em torno do hipergueto dos Estados Unidos e dos antiguetos da Europa: por aí estarem concentrados os desempregados, os sem-teto e os imigrantes sem documentos, bem como as frações inferiores do novo proletariado urbano empregado na economia de serviços desregulamentados. Vale ainda registrar a tendência das elites do Estado de usar o espaço como uma tela para evitar o enfrentamento dos problemas enraizados na transformação do trabalho.

CONTENÇÃO PUNITIVA DA NOVA MARGINALIDADE

A mácula espacial concede ao Estado maior autonomia para empreender políticas agressivas de controle da nova marginalidade que podem assumir a forma de dispersão ou de confinamento, ou, melhor ainda, combinar as duas abordagens. A dispersão visa espalhar os pobres pelo espaço e recapturar os territórios que eles tradicionalmente ocupam, sob o pretexto de que seus bairros são "áreas onde não se deve ir" que simplesmente não podem ser recuperadas. Atualmente está em curso a demolição em massa de habitações públicas no coração do gueto histórico das metrópoles norte-americanas e nas periferias pauperizadas de muitas cidades europeias.

Milhares de unidades residenciais são destruídas da noite para o dia e seus moradores são dispersos em áreas adjacentes ou em bairros pobres mais distantes, dando a impressão de que o problema foi resolvido. Porém, dispersar os pobres urbanos apenas os torna menos visíveis e politicamente menos problemáticos; isso não lhes dá trabalho nem lhes garante um status social viável.

A segunda técnica para lidar com a ascensão da marginalidade avançada toma a direção oposta: busca concentrar e conter as desordens geradas pela fragmentação do trabalho e pela desestabilização da hierarquia étnica (racial ou nacional) lançando uma rede policial vigorosa em torno dos bairros de relegação e ampliando as cadeias e prisões para onde seus elementos mais indisciplinados são cronicamente exilados. Essa contenção punitiva é geralmente acompanhada no front do bem-estar social por medidas destinadas a submeter os beneficiários do auxílio público às ocupações desclassificadas da economia desregulada de serviços, sob o nome de "workfare"iv (descrevo a invenção nos Estados Unidos dessa nova política em relação à pobreza, que combina o "workfare" em retração com o "prisonfare"v em expansão no meu livro "Punishing the Poor"vi).

Contudo, a política da "mano dura" ou "tolerância zero" também se revela autodestrutiva. Ao lançar os desempregados, os marginalmente empregados e os pequenos infratores atrás das grades, torna-os ainda menos empregáveis e tem como desdobramento a desestabilização das famílias e dos bairros das camadas menos favorecidas. O recurso à polícia, aos tribunais e à prisão para conter a marginalidade não é apenas extremamente custoso e ineficaz, mas agrava os próprios males que supostamente curaria. Por conseguinte, reingressamos no círculo vicioso apontado há muito tempo por Michel Foucault: o próprio fracasso da prisão para resolver o problema da marginalidade serve como justificativa para sua continuada expansão.

Por todas essas razões, o estudo da nova marginalidade encerra um interesse premente, não apenas para os estudiosos das metrópoles, mas também para os teóricos do poder do Estado e para os cidadãos mobilizados em promover a justiça social no século 21.

LOÏC WACQUANT, professor de Sociologia na Universidade da Califórnia, Berkeley, e pesquisador no Centro Europeu de Sociologia e Ciência Política

Tradução de Sergio Lamarão

1 Ver Loïc Wacquant, Urban Outcast: A comparative Sociology of Advanced Marginalidade (Cambridge, Polity Press, 2008); tradução francesa: Parias urbains. Gueto, banlieues, État (La Découverte, 2006 e 2007); tradução catalã: Pàries urbans. Ghetto, banlieues, Estat (Edicions de 1984, 2007); tradução espanhola: Los Condenados de la ciudad. Gueto, periferias, Estado (Siglo 21, 2007); tradução turca: Kent Paryalar1. Ileri MarjinalligØin Kar¸1la s ¸t1rmal1 s Sosyolojisi (BogØaziçi Üniversitesi Yay1nevi, 2011); tradução holandesa: Paria's van de stad. Nieuwe marginaliteit in tijden van neoliberalisme (EPO, 2012); tradução dinamarquesa: Byens Udstødte. En komparativ sociologi om avanceret marginalisering (Hovedland/Bogan Publishers, 2013); tradução alemã: Die Verdammten dieser Stadt (Springer, 2014); tradução italiana: (Edizioni ETS, 2014); tradução japonesa: (Shinyousha, 2015).Uma versão consideravelmente resumida deste livro, relativa a uma edição anterior da obra em inglês, foi publicada no Brasil com o título Os condenados da cidade: estudo da marginalidade avançada. Trad. João Roberto Martins Filho. Rio de Janeiro: Revan/Fase, 2001.
2 St. Clair Drake e Horace Cayton, Black Metropolis: A Study of Negro Life in a Northern City (Chicago: University of Chicago Press, [1945] 1993).
3 Loïc Wacquant, The Two Faces of the Ghetto and Other Essays (Nova York e Oxford: University Press, 2012). [edição brasileira: As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008].
4De acordo com definição do próprio Autor em outro texto, worfare designa programas de assistência pública destinados aos pobres, que fazem do recebimento do auxílio um benefício pessoal condicional, obrigando os beneficiários a aceitarem trabalho mal remunerado ou a se submeterem a estratégias orientadas para o emprego, tais como o treinamento no local do trabalho ou job-searching (em oposição ao welfare enquanto um direito inquestionável à assistência). (N. do T.)
5Prisonfare é um termo introduzido pelo Autor em analogia a workfare para designar programas de penalização da pobreza via o direcionamento preferencial e o emprego ativo da polícia, dos tribunais e das prisões (bem como suas extensões - liberdade vigiada, liberdade condicional, bases de dados de criminosos e sistemas variados de vigilância) no interior e nas proximidades dos bairros marginalizados onde se aglomera o proletariado pós-industrial. (N. do T.)
6 Loïc Wacquant, Punishing the Poor: The Neoliberal Government of Social Insecurity (Durham and London: Duke University Press, 2009) [ed. bras. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3ª ed. Trad. Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007].


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