Folha de S. Paulo


Por que as pessoas em situação de rua em SP não querem ir para os abrigos?

Nos últimos dias, o frio deu as caras na cidade de São Paulo. Porém, para quem dorme pelas calçadas e pelos viadutos, ele é ainda mais impetuoso. De acordo com o Censo da População em Situação de Rua divulgado este ano, existem 15.905 pessoas vivendo nessas condições pela capital.

A maioria está nas regiões da Sé e no bairro da Mooca (zona leste). Principalmente os homens, que correspondem a 82%. Dentre tantos números, o mais preocupante é saber que cerca de 7.335 pessoas rejeitam os centros de acolhida oferecidos pela prefeitura e continuam nas ruas mesmo quando o frio é de bater os dentes.

Conversamos com quem vive em situação de rua e as reclamações parecem pontuais: os abrigos são impessoais e o tratamento nem sempre é dos melhores. Mas o que mais parece incomodá-las são os horários de entrada e saída –que costumam ser às 16h e às 6h ou 7h, respectivamente. Priscila, há oito anos na rua, dá sua opinião: "Lá, tem hora certa de levantar. Na calçada, a gente levanta a hora que quer."

Isabel Bueno, coordenadora de Proteção Social Especial, explica que as regras são necessárias nos centros de acolhida, mas que podem ser mais rígidas ou mais flexíveis, dependendo do local. "Tem limite de horário para entrar. Não dá para toda hora ter alguém chegando porque a pessoa que está em repouso é incomodada." Atualmente, 10 mil vagas são oferecidas pela prefeitura. Mas podem aumentar de acordo com a demanda, principalmente em época de inverno.

O Padre Julio Lancellotti, da Pastoral de Rua da Arquidiocese de São Paulo, problematiza a situação e acredita que esses encaminhamentos são muito burocráticos. "O discurso oficial tem resposta para tudo. Está tudo solucionado, está tudo encaminhado. A vida das pessoas é mais complexa. Não é tão simples assim."

Conhecido não só pela militância política, mas também pelo sólido trabalho social que há anos realiza com a população de rua, ele acredita que as medidas ofertadas são raciocinadas em cima de quantidade, e não de diversidade. Ele cita o fato de casais hétero ou homossexuais não poderem dormir juntos nunca, já que os quartos são sempre separados.

A impessoalidade dos abrigos e o desejo de ter alguma intimidade são outros motivos pelo quais a rua parece ser mais confortável. "Uma grande busca que eles têm é por moradia. Ter o seu próprio lugar de aconchego, de sossego. É isso que não existe. O que existe são respostas massivas, de grande quantidade, que não respeitam a individualidade, a autonomia. Essas pessoas são consideradas sem autonomia."

A própria galera de rua rejeita qualquer sentimento de coitadice e sabe bem de suas condições em boa parte dos casos: álcool, drogas, falta de rotina, instabilidade emocional e financeira, bicos constantes para levantar algum dinheiro. Entretanto, se os centros de acolhida são pensados e estruturados com base nesses perfis, por que parecem não agradar mesmo diante do inverno?

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Para entender melhor, conversamos com os protagonistas dessa história

Cristiano, 31, há 11 anos na rua, e Priscila, 28, há oito anos na rua

Cristiano: Existe muita discriminação dos funcionários nos abrigos. Tratam a gente como animal. Não vira. [É melhor] ficar na rua mesmo. Você vai pedir alguma coisa pra eles e eles já vem xingando, perguntando por que a gente não vai trabalhar. Tem albergue que você tem de entrar às 16h e sair às 7h.

Seria melhor se a prefeitura desse emprego pra nós. Podiam alugar um barraquinho pra nós. Até comprar um barraquinho na favela eu comprava.

Priscila: Mal a gente não passa porque chegam muitas doações de coberta. Fico embaixo do viaduto. Desculpa, mas de albergue eu também não gosto. Ainda mais agora que tá no inverno. Lá, tem hora certa de levantar. Na calçada, a gente levanta a hora que quer. O duro é de manhã, pra sair. Geralmente, sai antes das 7h.

Pra melhorar, podiam tirar a gente da rua. Tem tanto prédio construído. Podiam fazer CDHU, pegar nossos nomes e colocar a gente pra morar lá dentro. A nossa parte a gente tinha de fazer. Pagar a luz, a água, o gás. Se dessem essa oportunidade... É isso que eu estou esperando. Eu não. Nós todos.

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Genivaldo da Silva, 38, atualmente em abrigo

Eu tenho vaga fixa em um abrigo. As pessoas não gostam de ir porque a qualidade dos abrigos em São Paulo está defasada. Antigamente, era só gente a partir de 40 anos de idade na rua. Hoje, tem até gente de 19 anos nessa situação. Tem muita droga, álcool. Na verdade, as pessoas são causadoras de situação, de incômodo. Elas furtam muito. Só querem brigar. Elas são difíceis de lidar. Os abrigos seriam pra gente que está nessa situação e não tá conseguindo se inserir na sociedade. É muito complicado lidar com essa gente.

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Luizmar, 28, dez meses em situação de rua

Durmo aqui na rua. O inverno é complicado porque baixa muito a temperatura. Se não tivermos o socorro que vem de vocês, das ONGs, do pessoal da doação, é complicado. As pessoas não gostam de ir pra abrigo porque... É muito bonito falar em abrigo. Mas só estando lá dentro... A superlotação é um dos fatores que faz todo mundo ficar tumultuado. Objetos somem. Custa conseguir uma roupa mais ou menos, uma caixa de música. Aí você vai prum lugar desse e some, te roubam. Não são todos, mas em alguns lugares existe também a opressão por parte dos funcionários. Alguns se sentem porque a pessoa tá num estado de rua e não conhece seus direitos. Eles acham que podem pisar. Por isso, a maioria prefere ficar na rua. Tem a questão da liberdade também. Geralmente, quem está na rua ama a liberdade ao extremo.

A dificuldade da pessoa que vive na rua é lidar com certos tipos de regra, ficar trancado. Se fosse pra todo mundo entrar e sair do abrigo, todo mundo ia querer. Mas eles sabem que quando der 16h, 17h você entra e fica lá. A rua também tem regras. Existem casos e acasos. A população de rua é complicada. Não dá pra falar de todo mundo. Cada um está na rua por diversos motivos. Quem já está há alguns anos se acostumou com esse ritmo. As chances de voltar pra família são bem mais difíceis.

Faz dez meses que tô nessa situação e meu problema é familiar. Divórcio. A rua é boa pra quem tem dificuldade de lidar com família, com regras, com drogas. Porque 80% das pessoas que estão aqui tem problema com drogas. A família já abriu mão. David, 33, espanhol, há oito meses em situação de rua em São Paulo

Tenho dormido no Cimento da Bresser [região repleta de pessoas em situação de rua na Zona Leste]. A gente vai sobrevivendo como pode. Graças a Deus tenho enfrentando melhor. Antes, quando eu morava na calçada, era pior. O abrigo tem muitas obrigações, tem de chegar antes das 21h, tem de ir embora às 6h. Ninguém gosta. Mas os funcionários me tratam bem.

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Amanda ( * ), 16, há três meses na rua

Estou em situação de rua há três meses. Vim pra cá por causa da morte da minha mãe. Vai fazer duas semanas que ela faleceu. Viver na rua tem liberdade. Pra mim, é liberdade. Já fiquei em abrigo e, tipo assim, é difícil lá dentro. Tem que acordar às 5h da manhã. Não pode dormir mais. Na rua, você pode dormir no horário que quiser. Eu faço minhas regras. Eu tenho minhas regras. Acordo de manhã, monto meu barzinho ali, vendo minhas coisinhas. Arrumo o barraquinho, ajudo o pessoal. Não gosto de acordar às 5h da manhã, né.

É um sufoco dentro do abrigo porque lá é muita lotação, tem muita mulher, muito homem. Tem que ter espaço pra dormir. Se não tem, tem que ir pra outro abrigo. Se você ficar 15 dias no abrigo, você consegue pegar vaga fixa. Aí você pode morar no albergue. Mas você não pode usar nada lá dentro. Tem regras. Não pode usar maconha, álcool, você tem de estar sã dentro do albergue. Não pode todo mundo ficar tumultuando. Eu não tumultuo, não. Eu gosto de ajudar os outros. Eu sou uma alma caridosa.

Eu quero ter uma casa, morar com o meu esposo, ter um filho. Tô tentando. Um dia eu consigo.

* O nome da entrevistada foi trocado para preservar sua identidade.


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