Folha de S. Paulo


'Aquele sangue era meu', diz mãe que viu filho morto em favela do Rio

RESUMO Ao voltar do mercado, Sheila Cristina da Silva, 46, encontrou o corpo de seu filho Carlos Eduardo, 20, na calçada, sob um lençol. Havia sido atingido por um tiro na cabeça quando estava na porta de casa, no morro do Querosene, na região central do Rio, na última sexta (10).

Desesperada, a mãe protagonizou uma cena dramática: mergulhou as mãos na poça de sangue que se formou sob o filho e passou em seu próprio rosto. O rapaz só foi enterrado nesta terça-feira (14).

Pablo Jacob/Agência O Globo
Sheila Cristina da Silva, 46, encontrou o corpo do filho Carlos Eduardo, 20, baleado; desesperada, passou o sangue do filho no rosto
A catadora Sheila da Silva fala sobre a morte do filho Carlos Eduardo, baleado em favela no Rio

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Tinha acabado de descer o morro do Querosene quando ouvi dois tiros. Continuei andando até o mercado para comprar três batatas, uma cenoura e pão, para fazer uma canja para o meu caçula, que estava doente.

Na volta, enquanto subia a escadaria, o pessoal da comunidade começou a dizer que meu filho tinha sido baleado [a polícia ainda não esclareceu sobre de onde partiu a bala; mais cedo, houve confronto entre PMs e traficantes em uma favela vizinha]. Ainda no caminho, soube que era o Carlos Eduardo.

Subi correndo, esbarrando nas pessoas, desesperada para ver se o Dudu ainda estava vivo. Mas, quando cheguei, vi o corpo dele no chão, na porta de casa, tampado por um lençol.

Retirei o pano para ver seu rosto. Só que não aguentei olhar. Ele estava morto, muito machucado. Gritei muito, xinguei, fiquei desesperada. Ninguém subiu o morro para socorrer meu filho. Ele nem chegou a ser levado para o hospital.

Doeu demais ver o sangue do meu filho derramado. Aquele sangue era meu.

Fiquei tão revoltada que passei o sangue do meu filho no rosto. Ali, naquela hora, não tinha mais medo de nada, da polícia, da morte. Minha vida já estava destruída.

Eu nasci e fui criada no Querosene. Todo mundo no morro conhece minha história. Todo mundo sabe o que passei para para criar meus filhos.

Tive 14 filhos: Luiz José, 26, Aluísio, 25, Bruno, 24, Gabriela, 23, Luiz Henrique, 21, Carlos Eduardo, 20, Marcela, 17, André, 12, Ezequiel, 4, e Gabriel, 3.

Não me lembro da idade de dois filhos, Natasha e Marquinhos, que foram criados por outra família. Não tive condição de cuidar deles na época e entreguei para adoção.

Perdi ainda dois outros filhos. A Vitória morreu com um mês de vida. O Max José morreu aos 12 anos de pneumonia. E agora mataram o Dudu.

Sempre fiz de tudo para não faltar comida aos meus filhos. Já trabalhei como diarista e cheguei a pedir esmola em frente à Igreja de São Sebastião, na Tijuca.

Ganho dinheiro hoje em dia como catadora de papel e de latinha no centro do Rio. Moro com meus seis filhos mais novos em uma casinha de um quarto.

O Dudu dormia na sala junto com seus irmãos. Meu filho não era bandido. Se fosse, eu falaria. Mataram um inocente.

E, desde a noite de sexta-feira, estou procurando pelo corpo dele. No sábado pela manhã, fui ao IML no centro do Rio para resolver tudo e enterrar meu filho. Mas o corpo dele não estava lá [o IML do Rio está temporariamente interditado]. Ninguém soube me informar para onde ele foi levado.

Na noite de sábado, um funcionário me ligou para dizer que o corpo estava no IML de Nova Iguaçu (município da região metropolitana do Rio). Ele disse que a gente poderia buscar o corpo só na segunda-feira. Três dias depois da morte. Estou esse tempo todo sem dormir.

Quando cheguei ao IML de Nova Iguaçu, disseram que o corpo tinha sido devolvido para o Rio. É muito descaso. Fazem isso porque a gente é preto e desdentado.

Voltei para o Rio e finalmente reconheci o corpo do meu filho. Agora, vou descobrir quanto vai custar o enterro e pedir ajuda aos meus vizinhos no morro. A comunidade prometeu fazer uma vaquinha [o jovem foi enterrado na tarde desta terça].


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