Folha de S. Paulo


Constrangimento, sem funcionária: 1 dia na delegacia de SP líder em estupro

Quinta-feira (2), 14h. Geidiane de Souza, 33, chegava ao 47º DP, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, para registrar um boletim de ocorrência contra seu ex-marido.

Carregava consigo, em uma sacola de plástico verde, outros oito registros, todos feitos de um ano para cá, quando se separou do porteiro com quem viveu oito anos.

Além dos papéis e de um cadeado fechado, ainda preso a um pedaço do suporte de ferro retorcido, traz os dedos das mãos inchados e roxos, pontos cirúrgicos nas sobrancelhas e um machucado no pé. Não traz, porém, os dentes da frente, que arrancou, já amolecidos, após ter sido espancada pelo ex em maio.

Geidiane havia feito o BO de agressão há uma semana. E voltava agora à delegacia, pois o porteiro, alcoólatra e usuário de cocaína, arrombara sua casa e a roubara.

Esperava estar registrando ocorrência pela última vez: pretendia fugir, no sábado, de volta para a Bahia. Ficou sabendo que o ex-marido comprara uma arma ("e não tenho mais nem como fechar a porta de casa").

"E eles não prendem ele, diz que para prender é só se for flagrante. Flagrante vai ser só quando ele me matar."

Alessandra Primo, 46, também teve os dentes amolecidos "a socos e chutes" pelo ex-marido. "Olha aqui", diz à repórter, balançando um dos incisivos inferiores como se fosse um dente de leite.

Por volta das 14h40, chegou à delegacia com a filha de 17 anos. Trazia consigo uma ordem de despejo expedida pelo ex, com quem construiu a casa que ainda dividem, apesar do fim do casamento.

A diarista denuncia as agressões desde 2004, depois de ser aconselhada por uma de suas patroas. "Eu chegava no trabalho de olho roxo e dizia que tinha caído da escada, por vergonha. Ela me chamou e disse 'isso não é normal'. Aí eu tomei coragem."

"Ele já bateu nela com uma enxada, quebrou o braço dela", diz a filha. Alessandra decidiu finalmente largar o marido em 2015, mas não saiu da casa. "Não é justo, eu que apanhei, eu que sofri. Não tenho para onde ir."

Geidiane e Alessandra não são pontos fora da curva. Durante as sete horas que a reportagem da Folha passou no 47º Distrito Policial, nesta quinta, quatro mulheres vítimas de violência doméstica foram denunciá-la –uma a cada uma hora e 45 minutos.

Segundo o delegado titular, Valter Bassoli, casos do tipo compõem o maior número de inquéritos abertos no local. "Deveriam ir para a delegacia da mulher, mas lá está sobrecarregado", diz.

Além de atender a 13 distritos policiais da zona sul, a delegacia especializada mais próxima fica a 14 km do 47º DP —viagem que, de ônibus, leva cerca de uma hora e meia.

Em todo o Estado, nenhuma das 132 Delegacias de Defesa da Mulher é 24 horas. Elas atendem de segunda a sexta, das 9h às 18h. Na capital, são apenas nove, para mais de cem DPs.

Talvez seja por isso que o 47º DP mantenha uma liderança indesejada: é a delegacia onde mais se registraram estupros no ano passado em São Paulo, com 68 denúncias.

A falta de ajuda especializada não é exclusividade do Capão Redondo: nenhum dos distritos campeões de estupro possui delegacia da mulher.

'VAI DEMORAR?'

Denunciar estupro não é fácil. Segundo pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), com dados de 2011 e 2013, estima-se que 527 mil pessoas sejam estupradas por ano no Brasil. As mulheres são 89% das vítimas e, do total, só 10% dos casos chegam à polícia.

Alessandra, por exemplo, nunca registrou os abusos do marido. "Eu era forçada a a fazer sexo mesmo que estivesse menstruada ou com dor."

Denunciar um estupro na delegacia do distrito mais violento de São Paulo em 2015 —onde o índice de homicídios subiu 59% em um ano— parece representar um desafio adicional a essas mulheres.

Das 9h30 às 16h30, a reportagem viu apenas quatro funcionárias mulheres. Destas, só uma passava com frequência pela sala de atendimento ao público: a faxineira.

Não há atendimento preferencial: nenhuma das três grávidas que entraram na delegacia durante o período -todas em final de gestação- foi atendida fora da fila normal. Uma delas perguntou ao chegar, às 13h27, quanto tempo esperaria. "Eu não gosto de dar prazo, porque aí ficam me perguntando 'vai demorar? Vai demorar?'", respondeu um funcionário, de camisa preta com estampa de uma pistola Glock 9mm, distintivo pendurado no peito e arma na cintura.

"Ontem, fiquei seis horas aqui, daí o sistema caiu", diz Leidiane Martins, 24, que foi agredida pela vizinha.

Dessa vez, esperou uma hora e meia em uma das nove cadeiras de estofamento gasto do local, que tem mais dois bancos, de ferro, e um banheiro, unissex e com higiene precária.

O mesmo funcionário havia se envolvido em um bate-boca com a mãe de uma das vítimas de violência doméstica. "Sua filha é maior, não é? Então é entre ela e o marido", disse à dona de casa Cleonice, 51, que pedia para registrar ocorrência de injúria contra o genro.

Na noite anterior, ele havia aberto a porta da casa dela e começado a arremessar as coisas da mulher, de 22 anos, xingando-as. Juntas, vinham denunciá-lo pela primeira vez.

"Parece que você está duvidando do que eu disse", reclamou a mãe, que, desencorajada, dizia que não iria mais registrar queixa separado da filha, que o denunciava por ameaça. "Duvidando? Eu coloquei seu nome aqui como injúria. Você vai chegar aqui agora e assinar esse boletim", retrucou ele, elevando a voz. Cleonice chorou —e saiu sem seu BO.

ORIENTAÇÃO

"Se ela fizer questão de ser atendida por uma mulher, encaminhamos para a delegacia da mulher", afirma Bassoli.

Segundo ele, o alto número de denúncias de estupro se deve ao fato de que o DP atende, fora do horário comercial, também as ocorrências do 92º DP, no Parque Santo Antônio, e do 100° DP, no Jardim Herculano. "Nem todos os casos aconteceram no Capão." E, mesmo que se mantenha campeão, o distrito registra queda nos estupros desde 2011, quando bateu em 93 denúncias.

O delegado afirma que mulheres como Geidiane e Alessandra "têm a oportunidade de pedir ajuda da lei para afastar os maridos", mas que cabe a elas mesmas buscar o Judiciário para tanto.

Nenhuma das mulheres ouvidas, porém, sabia como proceder. Algumas disseram "ter processo correndo" contra os agressores, mas não sabiam o estágio da ação. Outras, que haviam lhes dito para procurar a delegacia da mulher, mas não sabiam onde havia uma.

"Até falaram para ir, mas ninguém nunca parou para nem para anotar o endereço para mim", conta Geidiane, recolhendo os boletins que mostrava à reportagem para voltar para dentro da delegacia e continuar a esperar.

Via-crúcis depois do estupro


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