Folha de S. Paulo


Pressionada, polícia troca delegado em investigação sobre estupro coletivo

A Polícia Civil do Rio anunciou neste domingo (29) que a delegada Cristiana Bento, titular da DCAV (Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima), vai assumir o comando da investigação do caso de estupro coletivo de uma menor de 16 anos no Rio.

O caso estava sendo tocado pelo delegado Alessandro Thiers, titular da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática.

Durante as investigações do estupro, Bento e Thiers tiveram um desentendimento. Ela ficou descontente com a postura de Thiers, que obrigou a jovem a prestar um novo depoimento logo após Cristiana ouvi-lá por mais de duas horas acompanhada de um psicólogo na sexta (27).

A delegada foi designada na quarta (25) pelo Chefe de Polícia, Fernando Veloso, para auxiliar Thiers na investigação.

Cristiana deixou a delegacia com a sua equipe logo após encerrar o depoimento. Estava visivelmente contrariada, mas não quis tratar do tema.

Discreta, a titular da DCAV é conhecida por defender a redução do número de vezes que um menor de idade comparece diante de autoridades para explicar a violência sofrida.

Em junho de 2015, o Rio inaugurou um Centro de Apoio ao Adolescente e à Criança, no Hospital Souza Aguiar. O local pretende que menores vítimas de violência sexual prestem um depoimento gravado que é anexado ao inquérito impedindo o constrangimento de que a história seja contada inúmeras vezes.

"Atualmente, a vítima tem de fazer uma peregrinação pela cidade em busca de atendimento médico e policial. Após ser medicada, tem de ir à delegacia e, em seguida, fazer o exame de corpo de delito no IML. Em todas as situações, passa por entrevistas e rememora o evento traumático, o que chamamos de revitimização. No centro, todo o processo será feito de uma vez, no mesmo dia e no mesmo lugar.", disse Cristiana na ocasião.

A delegada foi titular de duas delegacias de atendimento à mulher, costuma ser dura com agressores e é casada com um oficial do Exército

AMIGO DO CHEFE DE POLÍCIA

O delegado Alessandro Thiers, 41, é amigo pessoal do Chefe de Polícia, que não cansa de elogiá-lo. Afastar o auxiliar do comando da operação foi uma decisão tomada apenas neste domingo (29), após a repercussão que o depoimento da adolescente teve.

Thiers vem se notabilizando por conduzir casos de grande repercussão nos últimos anos na Polícia Civil do Rio.

Em 2013, investigou as ações dos "black blocs" na cidade. No ano seguinte, a poucos dias da Copa prendeu, preventivamente, pessoas suspeitas de incitar manifestações: entre elas, a advogada Eloisa Samy, que até este domingo defendia a adolescente.

Ele também descobriu um grupo que fez ofensas racistas a atriz Tais Araújo, nas redes sociais. Antes de surgir o caso da adolescente havia aberto inquérito para apurar ofensas a cantora Ludmilla.

A mudança foi feita após pressão da até então advogada da vítima, Eloísa Samy, e do Ministério Público, que pediram o afastamento de Thiers.

"A medida visa evidenciar o caráter protetivo à vítima na condução da investigação, bem como afastar futuros questionamentos de parcialidade no trabalho", diz a nota da Polícia Civil.

No final da tarde deste domingo, Samy disse, em redes sociais, que não atuará mais no caso.

"Hoje à tarde recebi pelo WhatsApp um áudio da avó da adolescente me agradecendo pelo meu empenho e dedicação ao caso, mas dispensando a continuidade dos meus serviços em razão de a família agora estar sob os cuidados e a proteção da Secretaria de Direitos Humanos do Estado", disse a advogada.

Eloísa Samy alegava que Thiers investigava o caso com machismo e misoginia, colocando o estupro como crime menor.

Em entrevista, o delegado disse que investigava "se houve consentimento dela, se ela estava dopada e se realmente os fatos aconteceram".

Samy e o delegado que estava responsável pelo caso já haviam sido antagonistas em 2014, quando ela defendia manifestantes acusados de atos violentos durante os protestos populares.

Ela chegou a ser presa temporariamente por Thiers, sob acusação de associação criminosa. À época, a advogada negou ter participado de atos de violência nos protestos.

Até agora, a polícia não prendeu nenhum dos envolvidos.Dois suspeitos deram depoimentos na última sexta (27), mas foram liberados em seguida. Outro foi detido durante uma operação da polícia no sábado (28) e também foi liberado.

A vítima foi estuprada na madrugada do dia 21 no complexo de favelas São José Operário, zona oeste do Rio. Segundo depoimento da vítima, ela encontrou num baile funk na comunidade um rapaz de 19 anos com quem estava "ficando".

A jovem disse que foi parar numa casa com um rapaz e, a partir daí, só se lembra de ter acordado em outra casa. A investigação teve início após um vídeo da jovem, nua e desacordada, ser postado em redes sociais na terça (24).

Na gravação, um grupo de homens, em meio a risadas, toca nas partes íntimas da garota e diz que ela foi violentada por "mais de 30".

Também neste domingo, o Ministério Público do Estado deu parecer favorável à retirada do delegado Thiers, titular da DRCI, do comando da investigação. O parecer foi dado na madrugada deste domingo (29), após pedido da defesa da vítima.

"Para preservar o delegado e garantir a imparcialidade da investigação, decidimos transferir a coordenação das investigações para a doutora Cristiana, que já estava acompanhando as investigações porque a DCAV vinha dando apoio. Ela está recebendo os autos hoje, vai se inteirar e avaliar a necessidade de uma medida cautelar, seja ela de prisão ou não", disse o chefe da Polícia Civil, delegado Fernando da Silva Veloso.

ONDE FOI O CRIME Caso é investigado pela Polícia Civil e Ministério Público do Rio

CRÍTICAS

Samy criticou as perguntas feitas por Thiers durante o interrogatório de sua cliente. "O delegado perguntou se a menina de 16 anos, uma menina vítima de estupro coletivo, tinha por hábito fazer sexo em grupo."

Em 2009, a lei 12.015 foi alterada e passou a considerar, além da conjunção carnal, atos libidinosos como crime de estupro.

A presidente da Comissão de Segurança Pública e Assuntos de Polícia da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio), a deputada estadual Martha Rocha (PDT), repudiou, em nota, as declarações do delegado Thiers sobre o caso.

Segundo a deputada, as frases de Thiers publicadas pela imprensa criminalizam e culpabilizam a vítima. "Quando estamos diante de uma barbárie dessas e o delegado diz que "está investigando se houve consentimento e que a polícia não pode ser leviana", entendemos porque tantas mulheres deixam de ir às delegacias denunciar casos de abuso sexual e violência", afirmou Rocha.

Como presidente da Comissão de Segurança da Alerj, Rocha também lamenta que a investigação não tenha a participação da DEAM (Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher).


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