Folha de S. Paulo


Crime que abalou interior de SP aguarda julgamento há duas décadas

Ali mesmo, do banco de couro de sua Pajero 4x4, Marcelo Afif Cury, então com 22 anos, herdeiro de usinas de açúcar e álcool no interior paulista, acabou com a discussão. Pegou a pistola no console do freio de mão, onde também descansava seu Ray-Ban aviador, e atirou contra seus três novos desafetos.

Estacionado em cima da calçada da avenida Presidente Vargas, corredor nobre de Ribeirão Preto, conseguiu acertar a cabeça de um deles -ao lado de sua janela- e as costas de outro, que fugia.

Desceu do veículo e descarregou mais cinco tiros na última vítima. Dos três, apenas um sobreviveu. Cury deixou os corpos no chão e saiu em alta velocidade. Conseguiu escapar da prisão.

Até hoje, quase duas décadas depois, não sentiu a temperatura das algemas nos pulsos nem precisou sentar diante de jurados para convencê-los de que matou por necessidade (em legítima defesa) -sua alegação.

O usineiro não está foragido. E nunca foi julgado. Conseguiu encontrar brechas na lei tendo como defensores alguns dos advogados mais famosos (e caros) do país, como o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos (1935-2014). Hoje, é cliente de Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, recentemente cotado para o ministério de Michel Temer.

Em um caso raro do sistema penal brasileiro, a defesa dele obteve a anulação de duas sentenças de pronúncia no Tribunal de Justiça. Nelas, o juiz Luís Augusto Freire Teotônio dizia haver elementos suficientes para mandar Cury a júri popular. O TJ aceitou a alegação de que houve "excesso de linguagem" por parte do magistrado -pelos termos utilizados contra o réu.

Apenas na terceira vez que o documento foi elaborado, assinado por outro magistrado, os desembargadores concordaram que o processo poderia continuar.

Neste ano, Teotônio decidiu se afastar do caso. Em sua última manifestação no processo, disse que essas foram as únicas sentenças anuladas pelo tribunal em sua carreira.

Esse afastamento, segundo o magistrado, busca evitar novos atrasos. Escreveu: "Penso, dessa forma, evitando-se possíveis alegações de nulidades outras, com postergação maior do feito, que se arrasta por quase 20 anos, sem decisão final, não ser aconselhável minha permanência na condução do feito".

O SOBREVIVENTE

Na semana passada, após ser procurada pela Folha, a Justiça de Ribeirão Preto informou que pretende realizar o julgamento em agosto próximo. Não é a primeira vez que o júri é anunciado.

Foram tantas que o motorista Sérgio Nadruz Coelho, 54, único sobrevivente dos ataques de Cury em 5 de abril de 1997, não acredita mais em condenação ou até que haverá o julgamento. "Não acredito mais na Justiça."

Para ele, os advogados certamente conseguirão mais uma vez adiar o processo.

Coelho, que voltou para o Rio depois do ataque, tinha se mudado para Ribeirão havia poucos meses antes do crime. Foi atraído por uma reportagem de TV que alardeava as maravilhas da "Califórnia Brasileira", forma como a cidade ficou conhecida nos anos 1980 em razão de suas boas condições econômicas.

"Triste ilusão a minha. Arrumei pra minha cabeça", diz ele. "O Marcelo não falava nada. Só atirava. Não morri porque Deus não quis. Uma bala explodiu meu baço, perdi 70% de sangue na rua e fiquei 39 dias internado."

O motorista refuta a alegação de legítima defesa apresentada pelo filho do usineiro. Diz que não havia motivos, porque a discussão já tinha acabado e, além disso, Cury estava dentro do carro com mais seis colegas.

A fatídica discussão começou porque uma das vítimas, o representante comercial Marco Antonio de Paula, 29, não gostou de ver o usineiro e seus colegas sentados sobre o capô de seu Vectra.

Em desvantagem, pediu a ajuda de dois amigos: Coelho e o comerciante João Falco Neto, 34, este baleado na cabeça ao lado do carro.

"Não tenho raiva, tenho pena dele", diz Coelho. "Queria encontrá-lo um dia para saber qual foi o motivo que o levou a fazer aquilo. Ainda bem que não vou morrer com a porcaria dessa raiva."

O paradeiro de Cury desde então sempre foi incerto. Miami teria sido o destino pós-crime, segundo investigação da Polícia Civil à época. Defensores dele já afirmaram que mora na região de Ribeirão, onde a família tem negócios.

O advogado Fábio Tofic, defensor de Cury indicado para falar sobre o caso, não respondeu aos recados deixados em seu escritório.

Mesmo com tamanha lentidão, o TJ de São Paulo informou que não há indícios de irregularidade no trâmite deste processo e que ele nunca esteve tecnicamente parado.

O número elevado de testemunhas e os recursos da defesa colaboraram para essa demora. A Folha tentou ouvir o juiz Teotônio, mas o TJ informou que os magistrados não podem se manifestar sobre processos em andamento.


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