Folha de S. Paulo


Falta de estrutura marca jornada de haitianos entre São Paulo e Santiago

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Em Curitiba, quando Joseph François Viximar embarca, às 19h30 de segunda-feira (2), está a quase 3.000 quilômetros de seu destino.

Ainda falta muito para chegar à primeira fronteira, mas seu pensamento já está bem mais à frente: na tal montanha coberta de gelo entre a Argentina e o Chile e nos relatos de haitianos que nela foram barrados pela aduana.

Durante quase três dias, ele vai manter três coisas em suas mãos na maior parte do tempo: uma carta-convite de seu amigo Theodore, um pequeno caderno com todos os seus contatos e seu celular.

Do telefone, raramente ele vai se separar durante o caminho. Com o aparelhinho, irá interagir mais do que com qualquer dos outros 12 haitianos e uma dominicana que, como ele, se preparam para cruzar os Andes até Santiago. A maioria procura emprego.

O que buscam, porém, é mais do que isso. Com o Real desvalorizado e as ofertas de trabalho em baixa, querem a oportunidade que o Brasil já não lhes garante: pagar as contas em dia e enviar dinheiro para as famílias no Haiti.

Pelo celular, Joseph, 45, ficou sabendo que a capital chilena é agora o melhor lugar para a tarefa. Theodore o convenceu. Não fosse ele, porém, qualquer outro haitiano teria feito o mesmo. "Brasil não bem agora", define o pedreiro desempregado.

Entre haitianos, brasileiros, peruanos, argentinos, chilenos e a dominicana, 38 pessoas viajam rumo ao país andino. A Folha os acompanhou, por 3.500 km, da rodoviária do Tietê, em São Paulo, até Santiago, por 56 horas.

O ônibus parte do Rio e, na capital paulista, além de um músico pernambucano, de um chileno aspirante a hare krishna, de um arquiteto mochileiro e da reportagem, embarcam quatro haitianos.

Entre eles estão Yanick Honore, 42, e Betyanicka Darceli, 9, mãe e filha. Enquanto a garota se distrai com as árvores na janela, Yanick está tensa, a cabeça colada no banco da frente. É sua segunda tentativa de deixar o Brasil.

A primeira foi na semana anterior. Como não tinham os documentos necessários —passagem de ida e volta, registro de estrangeiro e uma carta-convite de alguém radicado no Chile—, foram barradas em Uruguaiana (RS). "No falar, no falar", ela se esquiva. A aduana chilena a aflige.

A tensão aumenta no final da noite, quando três haitianos deixam de embarcar em Balneário Camboriú (SC). Henry Johnson, 21, não tem a carta-convite. É barrado."Paguei R$ 800 ida e volta, não tenho para onde voltar", reclama. Solidários, seus dois amigos também ficam.

NA FRONTEIRA

A manhã do segundo dia alcança os migrantes em Canoas (RS). Pequenos grupos se formam. Entre os olhares ressabiados, um se destaca: Bruno —nome pelo qual um haitiano de 1,60 m escolheu ser chamado. "Eu não, 'brother', vou 'passeia' lá e volto. Brasil é bem melhor", diz.

No fim da tarde, ninguém fica para trás quando o ônibus entra na Argentina. Yanick ensaia um sorriso.

À noite, vem o aviso de que a próxima parada será somente no meio do dia seguinte, o último. A falta de banho dos 38 passageiros já não pode mais ser disfarçada. Todos estão avisados para controlar as idas ao banheiro. Um cheiro azedo ronda o corredor.

Após uma rápida parada em meio a "lugar nenhum" no norte da Argentina, o dia passa no ritmo monocórdio da região quase desértica. Aos poucos, no entanto, uma linha branca se divisa no horizonte.

Viagem São Paulo - Santiago

Mendoza fica para trás e surgem os Andes. A atração pelo novo dura o exato tempo da apreensão retornar. Pouco mais de uma hora e estão na fronteira do Chile. Todos descem em meio à neve e apresentam seus documentos. Um cão farejador se esgueira por entre as pernas de cada um.

Alguém diz a Yanick que podem encrencar com seu português quase nulo. "Visitar parente", ela ensaia.

Malas e bagagens de mão são abertas e examinadas. Já são quase 80 minutos ali e ninguém os tranquiliza.

Dá certo, todos passam. A viagem parece começar agora para os 14 emigrantes. Yanick sorri. Betyanicka volta a se encantar pela neve. Joseph continua agarrado ao celular e à carta —afinal, ainda faltam duas horas até Santiago...

Quando todos desembarcam, ele mostra à Folha seu bem mais precioso: "Eu Eugenold Theodore [...] de nacionalidade haitiana, com domicílio em Comuna La Cisterna, [...] estendo a seguinte carta-convite ao meu amigo Vixamar François Joseph."

Em meia hora, os 14 se dispersam em Santiago.


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