Folha de S. Paulo


Caso como o da 'pílula do câncer' prejudica o país, diz diretor da Anvisa

Em menos de um mês, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) viu a liberação, à sua revelia, da pílula do câncer. Por decisão judicial, teve que derrubar seu próprio veto a produtos com THC, um dos compostos da maconha. Também viu, no Congresso, avançar o projeto para liberação de inibidores de apetite, avaliação que caberia somente à agência.

Para o diretor-presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, as medidas não prejudicam a imagem do órgão, mas "abalam a do país", que passaria a ser conhecido por "atalhos" para aprovar medicamentos.

À Folha ele diz que a agência estuda a possibilidade de medidas para "diminuir os danos" da aprovação da fosfoetanolamina, substância chamada de "pílula do câncer". Para Barbosa, a lei aprovada pelo Congresso é "incoerente" e não deixa claro o impacto que produz. Leia abaixo trechos da entrevista.

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Alan Marques/Folhapress
O sanitarista Jarbas Barbosa, presidente da Anvisa
O sanitarista Jarbas Barbosa, presidente da Anvisa

RAIO X
JARBAS BARBOSA DA SILVA JÚNIOR

TRAJETÓRIA
Atual diretor-presidente da Anvisa, cargo que assumiu em 2015. Antes, no Ministério da Saúde, foi secretário de Ciência e Tecnologia, de Vigilância em Saúde e titular da secretaria-executiva

FORMAÇÃO
Médico graduado pela Universidade Federal de Pernambuco (1981). Possui especialização em saúde pública e epidemiologia, mestrado em ciências médicas (1995) e doutorado em saúde coletiva pela Unicamp (2004)

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Folha - Nas últimas semanas, houve uma série de decisões que questionam ou interferem em ações da Anvisa. Como o senhor vê essa questão?
arbas Barbosa - O problema não é a imagem da Anvisa, é a imagem do país. Sempre que há interferência do Legislativo ou do Judiciário, a imagem do país fica abalada. Os outros países podem pensar que, além do filtro técnico da Anvisa, medicamentos e produtos podem ser oferecidos à sociedade de outras formas.

Mas isso também não desacredita a agência?
O problema é mais grave. Mostra que, apesar de termos regras, temos atalhos e caminhos não muito transparentes que podem interferir. Mas não acredito que isso vá terminar. Em países como os EUA, há questionamentos. É um problema da sociedade moderna. O Brasil deve estar preparado para esse debate.

A Anvisa já informou que estuda ir à Justiça para reverter a liberação da fosfoetanolamina. Já chegou a fazer isso?
Não vamos entrar com ação judicial. Cogitamos ações regulatórias. O problema da lei é que não ficou claro o impacto que ela produz. A própria lei é uma incoerência geral. Num momento, é como se colocasse a fosfoetanolamina em uma terra de ninguém.

Em outros artigos, diz que [a substância] tem que ser produzida por laboratórios autorizados e que a dispensação e comercialização também entrariam nesse controle. Quem saberá se é fosfoetanolamina ou se é farinha dentro da cápsula?

Há outra maneira de tentar barrar a liberação?
Já há uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo da Associação Médica Brasileira. Estamos aguardando a análise. Se a lei for revogada, acaba o problema.

O Ministério de Ciência e Tecnologia já falou em sugerir à Anvisa liberar como suplemento alimentar.
Essa é uma decisão do produtor, que pode pedir o registro como cosmético, alimento ou medicamento. Para cada um deles, há regras.

Se essa decisão cabe ao produtor, o que caberia à Anvisa?
Quando é um medicamento registrado, ele tem um lote. No caso da fosfoetanolamina, como vai ser feito, se não tem registro nem lote? Fiscalizar vai ser difícil, porque não vai ter obrigação de informar data de fabricação e lote.

Temos uma regra para autorizar o uso de medicamentos ainda sem registro quando é promissor. A fosfoetanolamina não se enquadra nela porque não é medicamento e só tem relato individual. Você não sabe se a pessoa se sente melhor porque é placebo.

O sr. acredita que pode ser então apenas um placebo?
Difícil afirmar. Mas só a sensação de se sentir melhor não basta. Analgésicos fazem as pessoas se sentirem melhor. Câncer é uma doença muito grave. Estima-se no mundo que de 60% a 70% das pessoas com câncer utilizam terapia alternativa. Se a pessoa se sente bem tomando um chá sem consequência danosa, não tem problema.

O que motivou a aprovação, já que a Anvisa e Ministério da Saúde recomendaram o veto?
Creio que houve uma situação muito sensível porque foi aprovada por quase unanimidade na Câmara e Senado.

O momento influenciou?
Difícil dizer. Sou autoridade sanitária, não me envolvo em política. Mas seguramente que, quando um presidente toma decisões, se baseia nisso. Inclusive na possibilidade de um veto ser derrubado.

A Anvisa não poderia ter proibido antes essa produção?
A Anvisa age num mundo regulado. O que a Anvisa faz é fiscalizar se há uma fábrica autorizada com problemas. Mas se a pessoa está em um laboratório de química ou no fundo da garagem [produzindo uma substância para distribuí-la], aí é caso de polícia, de prender e processar por charlatanismo.

Outra decisão recente da Justiça também questiona a agência e derruba o veto ao THC, um dos compostos da maconha. Como está a questão?
Temos esperança de reverter por recurso. A decisão autorizou canabidiol, THC e "quaisquer produtos" baseados em Cannabis sativa. Para o canabidiol, não muda porque a Anvisa já autoriza.

O problema é o THC. Ele faz parte da lista de substâncias proibidas e não tem comprovação de benefícios sozinho. A situação é pior quando se fala em "quaisquer produtos". Abre margem para pessoas inescrupulosas venderem produtos como se fosse à base de cannabis e dizerem que faz bem. Não temos preconceito, mas a sentença abre uma porta larguíssima.


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