Folha de S. Paulo


Casa feita com restos e que levou 62 anos para ser erguida estará em Bienal

Mauro Pimentel/Folhapress
Casa da Flor, feita com restos de obras em São Pedro de Aldeia, no Rio
Casa da Flor, feita com restos de obras, em São Pedro de Aldeia, no Rio

Até seus últimos meses de vida, Gabriel Joaquim dos Santos (1892-1985) ainda saía pela rua atrás de cacos de vidro, pedaços de louça ou concha para adornar sua casa, que ele vira pela primeira vez em um sonho 62 anos antes.

Passou boa parte da vida construindo e decorando a Casa da Flor, como ele próprio a chamava, em São Pedro da Aldeia, cidade praiana no norte fluminense. Filho de índia com ex-escravo, sem estudo, ele a ergueu e decorou com restos da construção civil e lixo doméstico.

O resultado será representado 31 anos depois no pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza, em maio.

"Queria falar de uma necessidade espiritual por arquitetura, da arquitetura vagarosa. É um contraponto àquela feita de maneira industrial, para resolver nossos problemas. Outro aspecto importante era falar de cultura negra", diz o curador da mostra brasileira na Bienal, o arquiteto Washington Fajardo.

Mauro Pimentel/Folhapress
Casa da Flor, feita com restos de obras em São Pedro de Aldeia, no Rio
Casa da Flor, feita com restos de obras em São Pedro de Aldeia, no Rio

Fotos da casa estarão na primeira sala do pavilhão brasileiro, que falará sobre cultura popular. Ficarão ao lado de obras sobre a Casa do Jardim dos Cristais, projetada por Lina Bo Bardi no Morumbi, em São Paulo.

"Essas casas compartilham a mesma textura, a mesma palheta de cor, a mesma materialidade. A Lina foi uma das poucas que de fato fez uma imersão no que seria a cultura popular brasileira e cultura negra", diz Fajardo.

Ao pau a pique que usou para fazer chão e paredes, Santos prendeu, ao longo dos anos, pedaços de louça e cacos de vidro.

Adornou as paredes com esses restos, sempre criando a figura da flor –daí o nome da casa. A preferência pela imagem era tanta que ele incorporou à parede da sala uma embalagem de inseticida só porque o nome incluía a palavra "floral".

A casa, aberta ao público e gerida pelo Instituto Cultural Casa da Flor, acabou inspirando a admiração do escritor Ariano Suassuna (1927-2014), do poeta e colunista da Folha Ferreira Gullar e do documentarista Eduardo Coutinho (1933-2014).

Desde 1987 é patrimônio cultural do Estado do Rio e está em processo de tombamento pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

A pesquisadora de folclore popular Amelia Zaluar, fundadora do instituto, estava desenvolvendo um pesquisa com rendeiras de Arraial do Cabo, município vizinho a São Pedro da Aldeia, quando leu uma reportagem sobre a casa em um jornal local. "Cheguei e fiquei encantada. Ele era uma pessoa suave, quieta, estava de sandália e chapéu velho. Isso foi em 1978", diz Zaluar.

"Convivi com ele até sua morte. Depois, continuei pensando muito sobre a casa. Era um mistério aquilo. [Os artistas europeus] Picasso, Kandinsky, Miró faziam coisas parecidas. Ele estava nesse inconsciente coletivo, mas nunca procurou holofotes. Não tinha vaidade, mas era consciente do trabalho dele", diz a pesquisadora.

Para ela, perguntar como Santos foi capaz de construir a Casa da Flor "é que nem perguntar como João de Barro construiu seu ninho".

Mauro Pimentel/Folhapress
Sobrinho-neto de Gabriel dos Santos
Sobrinho-neto de Gabriel dos Santos

BEM DA CABEÇA

Santos começou a construí-la em 1912, depois de um sonho. Em 1923, com ela de pé, mudou-se para lá. Viveu sempre sozinho. Trabalhou na roça e em salinas, principal atividade econômica da região. É descrito por quem o conheceu como um homem quieto, solitário, místico e poético.

"Não vou dizer que era um bruxo, mas era um homem com certezas inexplicáveis", diz Zaluar.

"Num dado momento, a família chegou a achar que o velho não estava bem da cabeça. Mas quem não estava bem era a gente. Se tivéssemos internado ele, carregaríamos até hoje o peso de ter interrompido uma história", diz o sobrinho-neto de Santos, Valdevir Santos, hoje zelador da casa.


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