Folha de S. Paulo


Aviação 'sem certificado' é a que mais cresce em todo o país

Longe dos olhos dos órgãos reguladores e à margem das investigações de acidentes, a aviação experimental é o segmento que mais cresce no Brasil. Desde 2006, enquanto a frota nacional de aviões certificados saltou 49%, a experimental avançou 71%.

Já são 5.158 aviões dessa categoria no país -o que equivale a um a cada quatro da frota nacional em operação.

A mesma proporção se dá em relação às fatalidades: uma em cada quatro mortes em acidentes aéreos acontece na experimental, segundo levantamento com base em dados do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos).

No ano passado, foram 123 acidentes com aeronaves homologadas e 41 com experimentais. Os primeiros provocaram a morte de 57 pessoas, contra 19 na experimental.

A categoria de experimentais abrange todo e qualquer avião que não foi ainda certificado por autoridades aeronáuticas, como a FAA (Federal Aviation Administration) ou a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).

Um avião da Embraer em fase de testes, por exemplo, é considerado experimental.

A comercialização de um avião experimental só pode ser feita na forma de kits, para serem montados pelo próprio operador. Sua operação "é por conta e risco" e esses aviões não podem sobrevoar áreas densamente povoadas.

O Comp Air 9 do ex-presidente da Vale Roger Agnelli, que em 19 de março caiu sobre uma casa na zona norte de SP segundos após decolar do Campo de Marte, estava entre os mais sofisticados da categoria: voava a 460 km/hora, com alcance de quase 3.000 km e capacidade para sete passageiros. O motor era Honeywell, fabricante renomado que fornece para aeronaves certificadas.
setor em alta

Custos mais baixos de aquisição e de operação e dispensa de trâmites de licença e de certificação têm impulsionado esse setor.

Mas enquanto a legislação ainda vê os experimentais como aviões rústicos, para uso particular e montados a partir de kits pelo operador no fundo do quintal, esses aviões se tornaram máquinas sofisticadas, produzidas com materiais de última geração.

Contam com peças de fornecedores de primeira linha e que também equipam as aeronaves certificadas.

"Não é correto dizer que o setor não tem fiscalização. Não é a tradicional, mas é uma fiscalização do fabricante, do próprio mercado", diz Miguel Angelo Rodeguero, diretor de segurança da Appa (Associação de Pilotos e Proprietários de Aeronaves).

A diferença, segundo ele, é que um avião homologado faz testes de voo com piloto de prova, e o experimental, ensaios no computador. "Trata-se de um segmento importante da economia e bani-lo equivaleria a banir as motos."

A maior parte dos experimentais que voa no Brasil é feita no próprio país, a partir de projetos estrangeiros.

Questionada, a Anac informou que só registra aeronaves amadoras se o proprietário declarar que participou da "maior parte da construção".

Número de aeronaves no Brasil - Frota de aviões experimentais cresceu 71% no país em 10 anos

Francisco Bragante Junior, 60 anos, está há dois anos construindo o seu avião experimental de dois lugares, a partir de um kit importado. Ele tem um galpão próprio para isso em Louveira, no interior de São Paulo. O kit do monomotor foi todo comprado nos Estados Unidos.

"A aviação experimental, desde que entendida como aviões de pequeno porte, para uso particular e de lazer, com aeronaves leves, serve como um aprendizado e para a formação de mão de obra de pilotos, mecânicos e engenheiros", diz ele. "Uma regulação muito rígida poderia matar essa indústria."

FISCALIZAÇÃO FRÁGIL

Com a sofisticação dos projetos, a partir dos anos 2000 começaram a surgir pequenos construtores que compram kits para vender o avião pronto ou que prestam serviços de construção para terceiros.

Diante da popularização dessas pequenas fábricas, a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) passou a emitir autorizações ou permissões derrogatórias, legalizando, na prática, a comercialização.

Estima-se que há 20 fábricas nessa situação. A Anac diz que não usa o termo permissão derrogatória, mas os próprios fabricantes exibem isso em suas comunicações.

"Ninguém fiscaliza. O dono tira uma foto apertando um parafuso e diz que foi ele que montou", diz o advogado Rodrigo Gonzales, que representa a Abrapavaa, entidade que reúne parentes e amigos de vítimas de acidentes aéreos, e que entrou em fevereiro com ação coletiva contra União e Anac para impedir a comercialização das experimentais.

Em 2008, a Anac iniciou uma tentativa de regulação, criando a categoria leve esportiva, na expectativa de que houvesse uma migração para a certificação. Segundo a agência, "além dos custos, a indústria encontrou uma grande barreira, que era a carência de profissionais com conhecimento em certificação de projetos de aeronaves."

Outra incongruência da regulação diz respeito ao sobrevoo em áreas densamente povoadas. Para pousar e decolar do aeroporto Campo de Marte ou de outra pista da aviação geral, as aeronaves precisam de um plano de voo autorizado pela Aeronáutica.

A autorização só é dada mediante comprovação de que a documentação do piloto e da aeronave está em dia. "Não dá pra dizer que é irregular quando o avião paga impostos, paga pelo uso da torre de controle e tem o seu plano de voo autorizado", diz Miguel Angelo Rodeguero, diretor de segurança da Appa (Associação de Pilotos e Proprietários de Aeronaves).

Números de acidentes em aviões experimentais -

INVESTIGAÇÃO

Tanto a Appa quanto a Abrapavaa defendem que o Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) passe a investigar acidentes envolvendo aeronaves experimentais.

"Essa aviação está longe de ser amadora. Nosso levantamento dá conta de que morre uma pessoa por semana. É uma vergonha isso ficar a margem da investigação", diz Gonzales, que contesta os dados de acidentes do Cenipa.

Nos últimos cinco anos, o Cenipa diz ter investigado apenas três acidentes com aeronaves experimentais. Segundo o órgão, o fato de não haver certificação limita os trabalhos de investigação, pela impossibilidade de comparar o que de fato foi realizado na construção do avião com o que seria previsto.

Em maio de 2013, um Comp Air 8 (PP-XLR) caiu em Sorocaba, atingindo casas e um prédio próximo ao aeroporto e levando à morte do piloto e do copiloto. O Cenipa diz que começou a investigar, mas que o processo foi interrompido porque não apresentaria benefícios à prevenção de novos acidentes.

No caso do avião de Agnelli, o Cenipa diz haver "indícios de que pode trazer benefícios à prevenção de novas ocorrências, seja com o mesmo modelo de aeronave ou com outros modelos", o que poderia beneficiar toda a comunidade aeronáutica.


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