Folha de S. Paulo


Em dois anos, árabes se espalharam pelo Brasil

Em uma época de poucas estradas, sem estrutura para locomoção em massa, sírios e libaneses usaram barcos, burros e mulas para se fixarem no interior do Brasil. Os primeiros registros de árabes no centro-oeste do país datam de 1872, em Corumbá (MS), dois anos após o início das imigrações.

No interior, a ideia era continuar fazendo o que eles mais sabiam: comprar e vender produtos. A característica empreendedora e o plano de ascender na nova terra fazem parte da história da inserção da cultura árabe na sociedade brasileira.

"É uma comunidade que veio com o objetivo de construir a vida aqui e permanecer. Tinham uma capacidade espetacular de poupança e seguiam metas, muitas vezes descritas em cartas: que pelo menos um dos filhos se tornasse doutor, isso é, ou médico ou advogado e, depois, político", afirma o historiador Marco Aurélio Machado de Oliveira, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

A primeira onda imigratória de sírios e libaneses aconteceu no final do século 19 e as motivações eram sobretudo políticas e econômicas. Nesse período, a Síria e o Líbano estavam sob domínio do império Otomano (turco), que perseguia árabes cristãos e expropriava suas terras.

Os imigrantes desembarcaram nos portos de Santos (SP), Rio de Janeiro (RJ), Belém do Pará (PA) e Recife (PE) e mantiveram contato com parentes nos países de origem. "Por isso, o fluxo imigratório nunca parou, o Brasil é um destino bem quisto até hoje pelos árabes", afirma Oliveira.

Como não eram agricultores, encontraram espaço como mascates, ou seja, vendedores ambulantes de produtos como tecidos, bebidas, grãos, sapatos, roupas etc.

Levavam mercadorias dentro de pequenos armários de madeira que carregavam nas costas. Com o tempo, o dinheiro guardado era usado na compra burros e mulas para levar o "empreendimento" a terras brasileiras mais distantes.

Não à toa, várias lojas de árabes e descendentes têm a palavra "armarinho" no nome até hoje. "É um símbolo do começo da vida no Brasil para muitos árabes", diz a professora farmacêutica Soraya Smaili, 53, filha de imigrantes libaneses.

Filha de comerciantes libaneses, Soraya conta que os pais poupavam dinheiro para ela e os três irmãos irem à universidade.

"Ajudávamos na loja, mas o estudo era prioridade. Éramos incentivados. Lembro de ter ganhado da minha mãe um telescópio de brinquedo que vinha com uma coleção de revistas quando eu era criança, fiquei encantada. Ali, soube que seria cientista", afirma ela, que hoje ocupa o cargo de reitora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e lidera um laboratório de estudos sobre neurônios e doenças degenerativas.

EXPORTAÇÃO DE BORRACHA

Nos primeiros anos da imigração, o ciclo da borracha estava a todo vapor nos estados amazônicos e atraiu muitos árabes para a região.

Para chegar até lá, rios também foram usados como rotas. Água e peixes eram opção para ajudar a conter os gastos. Economizavam e seguiam mascateando.

Filho de imigrante libanês, José Farhat, 88, cientista político aposentado, nasceu na capital do Acre, Rio Branco. "Meu pai financiava produção de borracha e vendia tudo o que o seringal pudesse comprar: de facão a farinha de trigo, açúcar, lata para colher seringa. E exportava borracha para a Inglaterra", conta.

Ainda hoje, as capitais Manaus (AM) e Rio Branco (AC) concentram uma das comunidades mais expressivas dos descendentes de imigrantes árabes que viviam no Brasil, segundo o historiador Roberto Khatlab.

Outras regiões que concentram árabes no país são a tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, no sul e os estados do centro-oeste. A maior parte dos imigrantes que vivem em Foz do Iguaçu, no Paraná, são descendentes palestinos que chegaram a partir da década de 1950, segundo Khatlab. Já no centro-oeste do país, sírios e libaneses também marcam presença na política e no setor de serviços.

COMERCIANTE

Restaurantes árabes são sucesso certo em Mato Grosso do Sul. Pelas ruas de cidades como Campo Grande, Corumbá e Dourados, há uma enorme e variada oferta de locais especializados em pratos árabes tradicionais feitos por imigrantes e descendentes.

Foi na capital do Estado que o comerciante libanês José Thomaz, 92, fundou a lanchonete Thomaz Lanches, em 1978. Ali, o comércio de quibes, esfihas, coalhadas, homus se mistura a quitutes incorporados de outras imigrações à culinária brasileira, como pastéis, coxinhas, minipizzas e empadas.

Mas o detalhe crucial para que a empreitada continue a crescer há mais de três décadas está no princípio básico da confiança: os clientes entram, servem seus pratos e comem à vontade, sem comanda. Para pagar, dizem no caixa quantos salgados comeram.

"É uma relação de confiança que meu pai quis estabelecer desde o início e deu certo. Nunca tivemos prejuízos, vendemos cerca de quatro mil salgados por dia", conta o filho Ricardo Thomaz, 44. "Quando você trata o cliente com confiança, ele te responde com confiança de volta."


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