Folha de S. Paulo


Quibe e esfiha são o emblema da integração de sírios e libaneses ao país

Escolha o vizinho antes da casa, diz um provérbio libanês. Pois bem. Era da portentosa nogueira que pendia do quintal de seu vizinho de muro, em uma aldeia no Líbano, que Leila Youssef Kuczynski, criança, colhia nozes para enriquecer os quibes grelhados que sua mãe fazia à tarde.

Hoje, aos 62 anos, ela sustenta um dos pilares da cozinha árabe de São Paulo, o restaurante Arabia, que nasceu como rotisseria em 1987.

"O povo árabe é muito afetivo. Você nunca ouviu histórias de vizinhas no interior que faziam esfihas e passavam os salgados num prato pelo muro?", pergunta a cozinheira, filha de libanês.

Esse vaivém de gostosuras –e amorosidades– também marcou a chegada da família Isper a São Paulo, depois de um mês passado no navio, em 1970.

Foi do mesmo Líbano que a matriarca trouxe o costume de preparar um doce pascal, de massa de semolina e recheio de nozes. "Mamãe fazia doces e nos mandava distribuir aos vizinhos", lembra Olinda, que toca o Tenda do Nilo com a irmã Xmune.

Ali, no bairro do Paraíso, fizeram fama o quibe e o fatte, no qual nacos de músculo a desmanchar e grão-de-bico são embebidos em coalhada fresca, com alho, especiarias e castanha-de-caju (no lugar do caro pinoli).

A incorporação do quibe (e das esfihas) à cozinha paulistana ilustra a profundidade da integração dos imigrantes árabes, sobretudo sírios e libaneses, à cidade.

"O fato de acharmos esfiha e quibe em qualquer boteco tem a ver com a convivência dessas comunidades. A região da 25 de Março, por exemplo, nunca foi segregada, ocupada só por uma comunidade", diz a historiadora Samira Adel Osman.

Bem, o fato de a expectativa dos árabes de aqui juntar dinheiro e voltar à terra natal não ter se concretizado –e aqui terem se estabelecido e trazido suas famílias, desde o final do século 19– reforça ainda mais essa relação.

E então, a comida típica dos árabes e dos armênios que, num primeiro momento, ficou restrita à comunidade, com o tempo passa a ser assimilada pelos locais.

"É uma comida do dia a dia, se populariza facilmente. O arroz com lentilha é o nosso arroz e feijão e temos aqui ingredientes como grão-de-bico, trigo, leite para coalhada", diz Osman.

Hoje, encontra-se até pistache, artigo raro no início da imigração, e pinoli, ainda que a preços impeditivos –mais de R$ 400 o quilo.

Das adaptações mais salientes, porém, está a substituição da carne de cordeiro, abundante nas regiões montanhosas, pela bovina.

"Por isso o nosso quibe cru é bem vermelho e o de lá é mais rosado", diz o libanês Stephan Kawijian, 45, desde 1987 em São Paulo.

Pois esse personagem, que aprendeu português vendo novela, vendeu calça jeans no interior e formou-se na ciência que estuda pedras preciosas quase foi para a Arábia Saudita abrir uma loja da H.Stern. Hoje atende clientes que saem de todos os cantos e se amontoam em frente a seu restaurante, Sainte Marie, na zona sul.

Sua coalhada firme e suave ganhou seguidores desde que esse libanês a cozinhava nos fundos de casa e a vendia ao Empório Santa Maria.

Kawijian prepara ainda o basturmá, processo que lhe exige 90 dias. Trata-se de uma carne armênia, salgada e curada, envolta em crosta de especiarias, servida em fatias finíssimas, translúcidas.

CICLOS

"Quibe, esfiha e charuto de uva vieram com a imigração", diz Edmundo Issa, professor de cozinha mediterrânea da Anhembi Morumbi. Na mesma leva, propagou-se o uso do azeite, da canela, do cravo e de outras especiarias.

Hoje, nota-se nova etapa dessa influência, diz a historiadora Osman. "Refugiados recém-chegados têm usado a gastronomia para abrir pequenos negócios, como inserção econômica e social."

É o caso de Talil Al-Tiwani, que veio da Síria em 2013 e montou em sua casa, no Brás, uma operação para fazer comida árabe sob encomenda.

Por ora, brecou a produção para abrir um restaurante no Brooklin, no próximo mês, com investimento arrecadado em campanha de financiamento coletivo on-line: R$ 62 mil, em cinco meses.

Saem de suas mãos, que nunca haviam cozinhado em Damasco, uma esfiha menos condimentada que a de lá.

E, bem, façamos a distinção do que é encontrado aos montes nos botecos cidade afora. Os salgados feitos originalmente no forno a lenha, aqui, são mais brutos e, esquecidos em estufas, não raro ficam ressecados.

Os quibes sofrem mais. Aqui, são densos e compactos, como "bolinhos de quibe", nas palavras de Issa.

Tradicionalmente, o quibe feito à mão, um a um, é oco, de parede fina e recheio úmido, no qual a carne é refogada com pimenta, cebola, alho, salsinha –quiçá pinolis ou nozes.

"Olha o gestual para preparar um quibe", diz Leila, enquanto mostra o movimento das mãos. "Você vai trabalhando a massa, que precisa ser flexível para não romper, vai girando, alisando, afinando a parede. Faz uma cova, põe o recheio, fecha. Quando chacoalha, diz a lenda, precisa senti-lo mexendo, solto."

Na Tenda do Nilo, cujo quibe fez fama e história em São Paulo, as irmãs Isper, Olinda e Xmune, não toleram gotas de limão. "Quibe nasceu para coalhada. No Líbano, ninguém come assim, aqui é que as pessoas têm o costume."


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