Folha de S. Paulo


Apesar dos laços com o português, árabe é pouco ensinado no Brasil

O prefeito é Haddad, o jogador de futebol é Sheik, o MC é Bin Laden e o lanchinho à tarde –oxalá– é quibe e esfiha. Tudo tranquilo, até que alguém lhe diga "harabishueba". Haram! Aí, o véu se arrasta pela medina, e já viu.

A língua árabe e o português se encontram por todos os cantos, no Brasil. Algumas palavras vêm de um passado distante, da presença árabe na península Ibérica e do contato entre comerciantes. "Açúcar", por exemplo. Outras chegam pela política, o esporte e as telenovelas.

Mas, a despeito da imigração libanesa ao Brasil e dos laços culturais com o Oriente Médio e o norte da África, o ensino do árabe ainda é excepcional no país. Há poucos cursos, poucos professores e –mesmo com o interesse trazido pelo contexto geopolítico atual– poucos alunos.

Parte do problema é intrínseco à língua. Não é possível estudar o árabe como se estuda o inglês ou o francês. Idioma exigente, pede dedicação intensiva e de longo prazo. A compreensão vem aos poucos, e em alguns casos anos de prática não são o suficiente para a fluência.

O árabe, como o hebraico, é uma língua semítica. Inglês e francês são línguas indo-europeias. Significa que há pouco em comum entre o árabe e o português. Não apenas no vocabulário, mas também na maneira de pensar a língua.

O verbo, em árabe, costuma vir antes do sujeito. O verbo pode, ainda, ser conjugado de uma maneira específica se o sujeito for uma dupla ("eles dois escreveram" tem conjugação diferente de "eles três escreveram"). No presente, não se usa o verbo "ser" (diz-se "eu um estudante", em vez de "eu sou um estudante").

Também é um desafio aos estudantes dominar a escrita, feita em um sistema distinto do latino. Escreve-se da direita para a esquerda, e em geral sem registrar as vogais.

Para estudantes em São Paulo, o estudo sistemático do árabe, da gramática à cultura, é feito especialmente na Universidade de São Paulo. A equipe de professores é um resultado direto da imigração libanesa, quando não são imigrantes eles próprios.

A professora Safa Jubran, chefe do departamento de letras orientais da USP, nasceu no Líbano e mudou-se ao Brasil durante a guerra civil naquele país (1975-1990).

Mas é essencial, apesar de às vezes inviável, a imersão em países de língua árabe. Como poucos alunos estão expostos ao idioma, há carência de prática cotidiana.

Há alguns anos, países como Síria e Iêmen eram centros importantíssimos nesse ensino. Hoje, a insegurança na região força alunos a buscarem cursos, por exemplo, no Marrocos, onde o conhecimento da língua francesa dificulta a imersão de fato.

Mesmo países mais estáveis, como o Egito, têm visto uma queda drástica no número de estudantes em seus cursos intensivos e de verão.

A recompensa, no entanto, faz valer o esforço: como outras línguas, o árabe é a chave para a compreensão de um universo cultural próprio. Ainda há pouca tradução da literatura árabe para o português, e mesmo ao inglês, e somente o conhecimento do idioma pode preencher esse espaço vazio.

Mas a língua árabe vive para além de seu ensino. Como Haddad, há diversos políticos de origem libanesa no Brasil. O vice-presidente Michel Temer, por exemplo.

São sobrenomes que, de tanto repetirmos, já parecem brasileiros. Assim como ninguém estranha o apelido do jogador de futebol Sheik, que em árabe é título de honra, ou o "oxalá", que vem de "in shah Allah" (se Deus quiser).

E, ao menos quando eu estava na escola, era de conhecimento geral que dizer "harabishueba" é uma ofensa séria entre árabes –só que a gente não sabia, então, que a expressão correta é em árabe "khara bishuerbak": "cocô no seu bigode". Haram!

DIOGO BERCITO, 27, estudou árabe no Brasil, no Marrocos, em Israel e no Egito; também trabalhou em países como Síria, Iraque e Iêmen.


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